As idealizações nossas de cada dia ou: Sobre a relação do Ideal do Eu com o desejo | Rafaela Beal Bossardi

As idealizações nossas de cada dia ou:
Sobre a relação do Ideal do Eu com o desejo



Rafaela Beal Bossardi



      Em seu seminário sobre os Escritos Técnicos de Freud, Lacan aborda, entre outros, os conceitos de Eu Ideal e Ideal do Eu. Para tanto, parte do texto de 1914 de Freud, “Sobre o narcisismo: uma introdução”.
      Num primeiro momento, na fase da “Sua Majestade, o Bebê”, o Eu Ideal é formado pelos desejos que os pais investem sobre o bebê. É a fase do narcisismo primário, em que o bebê se confunde com um belo animal fechado sobre si mesmo e que exerce sedução sobre os demais. Ele goza de todas as preciosas perfeições do eu e por isso, ama apenas quem satisfaz suas pulsões sexuais autoeróticas de conservação do eu.
      É preciso que haja um afastamento do narcisismo primário para que o eu se desenvolva e advenha dessa confusão/similaridade com esse belo animal. Esse afastamento é provocado pela relação ao outro.
      No esquema do espelho proposto por Lacan, a imagem real situada atrás do espelho é refletida através de uma intermediação feita por este outro que lhe antecipa uma imagem unitária através de palavras. É a palavra a função simbólica que define o maior ou menor grau de perfeição, completude, aproximação do imaginário.
      A ligação de cada objeto a outro é feita da fixação narcísica a essa imagem que ele esperava. A libido, assim, passa a ser objetal, e nesse sentido, investe somente no que é simétrico à imagem do eu, em algo que é o Ideal do Eu. O deslocamento da libido para um ideal ou faz-se para uma imagem do eu que se chama ideal – que não é semelhante a que está aí presente ou a que aí esteve – ou chama-se ideal do eu alguma coisa que está para além de uma forma do eu, que é propriamente um ideal.
      Aquele Eu Ideal, possuidor de todas as preciosas perfeições do eu, como o eu infantil, o sujeito dificilmente aceitará renunciá-las; ao contrário, procurará reganhá-las na forma nova do seu Ideal do Eu. Assim, o Ideal do Eu é exatamente simétrico e oposto ao Eu Ideal. No momento em que ele substitui o termo Eu Ideal por Ideal do Eu, faz preceder o Ideal do Eu de nova forma. A nova forma do seu Ideal do Eu é o que ele projeta diante dele como seu ideal.
      Esse ideal é possível de ser identificado cotidianamente nas idealizações feitas em relação aos heróis, aos amores, aos outros. Elas passam a comandar todo o jogo de relações de que depende toda a relação a outro.
      A identificação a este outro situa o eu no narcisismo secundário e sua relação imaginária e libidinal ao mundo em geral. É o que lhe permite estruturar o seu ser. O sujeito vê o seu ser numa reflexão em relação ao outro, em relação ao Ideal do Eu.
      É o que lhe permite investir libidinalmente um objeto ideal tornando-o desejável, guiando o sujeito em direção ao seu desejo. Mas, sendo ideal, é sempre irrealizável, o que faz com que o sujeito continue sempre desejando (um ideal irrealizável).
      Enfim, a partir do que Lacan expõe em seu Seminário 1, é possível concluir que o Eu Ideal e o Ideal do Eu fazem parte do processo de estruturação do eu, onde se desenvolve toda a experiência analítica, na junção do imaginário e do simbólico.