Texto preparatório para a Jornada de lançamento da Revista
Scriptura XIV - Psicanálise em Tempos Desvairados II –
Reflexões sobre o artigo Psicanálise e Democracia, de
Jean-Pierre Lebrun¹
Nara Lúcia Girotto²
Sempre tivemos momentos históricos desvairados (guerras, genocídios, regimes políticos opressores, estado de exceção). Na atualidade, passamos de episódios desequilibrados a uma frequência contínua de acontecimentos insanos, por isso destacamos a pertinência do argumento da Jornada “Psicanálise em Tempos Desvairados”.
Depois de muito refletir com Jean-Pierre Lebrun, no seu artigo Psicanálise e Democracia, sobre a importância do lugar de exceção, portanto, da diferença, encontramos, no tempo presente, vários posicionamentos e ações que almejam abolir a exceção, o Um representado pelo pai, chefe, Deus. Como exemplos, podemos citar os coletes amarelos, movimento francês, mencionado, por Lebrun, e as manifestações de junho de 2013 no Brasil, com declarações contundentes de manifestantes que se diziam não representados por nenhum partido político.
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¹Leitura e estudo do artigo realizado com os colegas Alderi Tomazini, Adriana Dallanora, Camila Prigol Machado e Matheus Sgarioni, do cartel A dívida.
²Membro clínico da Escola de Estudos Psicanalíticos.
Lebrun nos apresenta uma diferenciação entre democracia e democratismo. A democracia não prescinde do Um da exceção do conjunto, enquanto o democratismo faz grupo, cada um em relação aos outros. Sem a representação da autoridade política, visada pelo democratismo, perde-se a existência de algo que nos transcende, que pertence ao coletivo, a uma referência comum.
Estamos diante de uma mutação do laço social sinalizada pela rejeição daquilo que faz exceção e a primazia da individualidade e da singularidade. Uma mutação que podemos pensar com os múltiplos significados de logos: razão, discurso e palavra. Lebrun nos lembra da importância do conceito lacaniano parlêtre/falasser, considerado como algo irredutível, isto é, os homens constroem laço social ao falarem entre si.
Não considerar o pai como uma invariante antropológica, pois
uma invariante antropológica não é o pai mas é a linguagem, o
fato de sermos falantes (Lebrun, 2024, p. 22).
A primeira incidência de perda, de gozo do ser falante, ocorre na linguagem, ou seja, a palavra elide a coisa e, com a inserção gradual da criança na organização social, ela vai encontrar restrições do seu gozo devido à existência dos nomes-do-pai na cultura, na linguagem. Por isso, podemos dizer que uma das funções do Coletivo, do Estado, do Bem Comum, é a restrição do mais de gozar.
Sempre convivemos com as figuras do civilizado e do bárbaro: enquanto o civilizado opera com as leis lógicas da linguagem, com a existência do limite imposto pelo impossível de tudo dizer e significar, o bárbaro não é marcado por este limite e, não dispondo de palavras para falar, usa a violência no lugar da retórica.
A estrutura do ser falante, que não detém todos os significantes, o inconsciente como depósito da perda de uma letra, requer o verbo para que possamos lidar com os impossíveis advindos deste limite. Por isso, é preocupante quando a democracia, englobada pelo neoliberalismo, vai de encontro com a sustentação do Um, da perda necessária, quando somos representados pela autoridade política.
O impossível, indicado pela estrutura do falasser, nos levou a pensar com Lebrun os impossíveis freudianos: governar, educar e psicanalisar. Nos três ofícios, vamos encontrar a dimensão imutável, inamovível da Coisa, indicada por uma letra, que abre a possibilidade de o dizer ser dito sempre de outro modo, sem jamais encontrar a completude, a tradução perfeita.
Não podemos prescindir do real, daquilo que não cessa de não se inscrever, pois é exatamente este limite que nos humaniza, nos civiliza. Então, tanto para as questões da polis, da política, como para o ofício do psicanalista, nos deparamos com a importância da perda, do resto, do impossível, do real.
Lebrun condiciona a existência da psicanálise com a existência da democracia, já que ambas lidam com o ato de dizer, com os limites da palavra. Então, os elos que podemos fazer dizem respeito ao falasser, isto é, sem a existência da fala endereçada ao desejo do analista, esse não poderá ler como o sujeito lida com o trauma advindo da sua inserção na linguagem.
O retrocesso a uma relação direta com o objeto, não mediado pelo logos, nos coloca imersos em acting out e passagem ao ato disseminados, bem como o recurso exclusivo da violência, da guerra para solucionar os conflitos. Este estado descrito compromete o ofício do psicanalista, já que são soluções frequentemente discordantes com a ética da psicanálise, que é a ética da linguagem, do inconsciente estruturado como linguagem.
Para finalizar, não temos outra forma a não ser construir nossa existência em torno de um vazio e, talvez, nasce, assim, a autoridade, com a construção de um lugar, de um posto que fez a exigência de impor-se pela força da palavra, mesmo que esta carregue no seu cerne um limite.
Referência
Lebrun, J.-P. (2024). Psicanálise e Democracia. Psicanálise em Tempos Desvairados II. Revista Scriptura, Escola dos Estudos Psicanalíticos, 2024.