Palavra Inicial
O mundo contemporâneo apresenta desafios inusitados para a psicanálise e para o psicanalista. São precisamente problemas cruciais que batem à nossa porta, muitos questionamentos incontornáveis que exigem um posicionamento do psicanalista. Cada psicanalista se vê confrontado por essas questões e, certamente, tece considerações pertinentes que partilha com seus pares e até mesmo se manifesta em espaços públicos. Nossa Escola abre o espaço para falarmos sobre isso, pois se trata de estarmos à altura do horizonte em que se situa a subjetividade de nosso tempo.
Talvez a pergunta primeira que um psicanalista se faça seja a respeito do que é ser psicanalista e como se exerce este ofício. Quais são as condições para que alguém se declare apto para isso? Que responsabilidade isso implica? Quais são as condições lógicas, segundo a lógica do inconsciente, e pessoais requeridas a quem se propõe como psicanalista desde a criação realizada por Freud? Creio que somente com a elucidação desses pressupostos poderemos responder aos desafios e questionamentos lançados por seus opositores, seja das diversas terapias ancoradas nas neurociências em aliança com as terapias bioquímicas, como é o caso de terapias cognitivistas baseadas em evidências, seja das terapias religiosas ou da ideologia de gênero, com seu afã normalizador. Ora, a psicanálise nada tem a temer das neurociências. A pretensão de reduzir a especificidade dos fenômenos psíquicos a conexões neuronais tem uma longa história marcada por posições positivistas como já despontava no século XVIII a concepção do homem-máquina e a frenologia. Atualmente, acompanhamos um grande avanço: substituir a alma por genes e neurotransmissores e, em decorrência, substituir o coração da prática psicanalítica, a fala, por psicofármacos. E de modo mais radical, surge a perspectiva transumanista, e ainda mais, o pós-humanismo. Contudo, o psicanalista segue com interesse os avanços significativos no tocante às bases neuronais do comportamento humano.
Como o psicanalista e a instituição psicanalítica se posicionam frente aos avanços propostos nos atuais manuais de diagnóstico e tratamento psiquiátricos por meio do que se denomina simplesmente de “transtornos psíquicos” em substituição às clássicas noções de psicopatologia? Ora, a pretensa higienização dos quadros clínicos que vem acompanhada de uma demonização do páthos e de sua lógica manifesta uma explícita recusa em reconhecer a incidência de uma lógica inconsciente que subjaz às articulações da psiqué.
A psicanálise teria algo a temer dos questionamentos incisivos dos movimentos Queer? No âmbito social, a pretensão de substituir a noção de sexualidade pela noção de gênero certamente toca em uma questão crucial: a defesa de minorias excluídas. Entretanto, parece que esses movimentos estão em atraso quanto à crítica da hegemonia do monocentrismo masculino, assim como passam ao largo do que constitui o núcleo da descoberta freudiana, cuja lógica foi explicitada por Lacan, ou seja, a impossibilidade da linguagem em representar o sexo. A tese subjacente a esses movimentos se ancora no pressuposto de que não haveria qualquer ponto de impossibilidade para o existente humano, cujos efeitos sociais e psíquicos, especialmente no tempo de humanização da cria humana, correm em consonância com a economia neoliberal dominante.
Muitas outras questões emergem na interface entre a clínica psicanalítica e a pólis. A psicanálise certamente não se restringe ao âmbito da vida privada, como se evidencia nas intensas incursões de Freud no que diz respeito à civilização (processo de humanização) e à cultura (estabelecimento dos laços sociais). Deslindar a interface entre a subjetividade e suas cenas íntimas e a esfera pública é uma questão crucial para a psicanálise. Como fazer isso? Muitos avanços foram propostos por Freud, como ele o fez em Totem e tabu, O futuro de uma ilusão, Sobre a guerra e a morte, Psicologia da massa e análise do eu, Mal-estar na civilização, O homem Moisés e a religião monoteísta, além de seus escritos sobre a arte e a literatura. O pressuposto que fundamenta suas incursões na cultura é um só, explanado em sua obra capital: o inconsciente opera determinações que não deixam nenhuma palavra, pensamento ou ação fora de seu campo. Lacan leu atentamente isso e enunciou: o inconsciente, como campo do Outro (o social), se estrutura como uma linguagem. Aquilo que brota no âmbito pulsional se estrutura como linguagem, e nisso advém a subjetivação. Encontro nunca bem resolvido, sempre problemático, entre o pulsional e o civilizatório. Entretanto, o que se passa no social é tão íntimo, ou seja, é extimo, que Lacan poderá dizer: o inconsciente é a política! Como ler esse enunciado? Desafio incontornável para a psicanálise e para os psicanalistas! Talvez a psicanálise não deveria se limitar a ocupar um lugar, entre outros, na pólis. Isso já foi um enorme desafio enfrentado por Freud em seu tempo. O que poderia significar introduzir a pólis dentro da psicanálise, considerando o que seria seu futuro? A psicanálise tem futuro?
A interface psicanálise e política nos remete às irrupções de violência que compõem as cenas cotidianas. A violência se ancora no ódio, que é mais primitivo do que o amor, justamente por irromper no encontro com o outro, o Outro da linguagem que nos impõe a saída de conforto narcísico. O ódio, antes de tudo, é ódio ao simbólico. Voltamos sempre à pergunta: o que determina a significativa incidência da violência contra o feminino e a infância? Acompanhamos a queda da tese de legítima defesa da honra para justificar a absolvição de acusados por feminicídio, crime que agora foi alçado à categoria de crime autônomo. A postulação freudiana de que toda violência, em sua base, é fomentada pelo sexual incestuoso poderia atualmente nos orientar nos meandros das cenas íntimas assim como nos conflitos sociais. E a violência em relação àqueles que não pensam como nós e que, em decorrência, são insultados, maltratados e segregados? Indícios do mal-estar no laço social.
E a inteligência artificial? E o mundo virtual? Como se situa o psicanalista, calcado em sua experiência clínica, a respeito da acelerada colonização da vida cotidiana e suas linguagens pelos implacáveis algoritmos? Vemos que nossas escolhas, subjetivamente apercebidas como autônomas, nos são impostas pelos centros de armazenamento de dados que nos dizem respeito. A capacidade crescente e ilimitada do Big Data em direcionar e determinar os processos de tomada de decisão, propondo sempre ações mais eficientes, em breve tempo, poderá suplantar nossa capacidade de decisão e anular nossa implicação ética em nossas ações. Google, entre outros, já decide muitas coisas por nós. Se até então estávamos ameaçados pelas catástrofes advindas da natureza, da decrepitude e do semelhante, atualmente, estamos à mercê das catástrofes algorítmicas provocadas pela IA. Novas questões éticas se impõem!
Os efeitos sociais e subjetivos da expansão acelerada da IA aliada ao rápido desenvolvimento da biotecnologia nos defrontam com questões inusitadas. O domínio crescente das funções orgânicas, como a reprodução humana, tende a excluir a importância da referência ao Outro e o engajamento da palavra no advento de um novo ser. Enfim, nas redes sociais se impõe uma nova lógica que se caracteriza por dois postulados: uma horizontalidade generalizada que desqualifica o lugar da autoridade e a suposição de que nossos atos poderão acontecer impunemente, ou seja, a prevalência de uma lógica inconsequente. E assim vemos surgir a afirmação de uma autonomia irrestrita: tudo seria possível!
A formação do psicanalista, questão sempre problemática e crítica, poderia se dar de modo light ou até mesmo acadêmico? Não teríamos que retomar os fundamentos e os modos de dirigir as análises propostos por Freud? Como é considerado, em nossa concepção da práxis psicanalítica, o par freudiano transferência/resistência? Em que ponto resistimos ao inconsciente?
Esses são alguns problemas cruciais que se colocam hoje para a psicanálise e para os psicanalistas, abalando nosso conforto e nossas certezas.
Mario Fleig
Presidente da Escola de Estudos Psicanalíticos, gestão 2023-2025