Palavra Inicial
De qual palavra e de qual início falamos?
Esta não é uma palavra inaugural no sentido cronológico ou protocolar. Trata-se de um ato de fala que se inscreve no simbólico da Escola, apostando na continuidade de seu trabalho, sem recuar diante de seus impasses. Uma palavra que remete às fundações: às palavras iniciais de Freud, de Lacan, às que instituíram a Escola Francesa de Psicanálise, e, entre nós, às que lançaram a Escola de Estudos Psicanalíticos. Que palavras inauguram? Que estilo de condução elas anunciam?
Escrever esta palavra nos convoca a situar o tempo à maneira da psicanálise — não como sucessão linear, mas como tempo lógico. Cada nova gestão é menos um novo começo e mais um gesto de reinscrição. Trata-se de fazer renascer a Escola com um novo olhar, que é fruto de uma história. Uma história feita de rastros, restos, insistências — marcas do passado que constituem o presente.
Resgatar a história não é um gesto neutro. Implica reler o presente e, com isso, incidir sobre o futuro. Um dos significantes que nos funda é a palavra “Escola”, também presente na instituição criada por Lacan. Foi ele quem usou pela primeira vez esse termo no campo da psicanálise — e não "Associação" ou "Sociedade". O que essa escolha implica?
“Escola” privilegia a relação com o saber, em contraste com os modelos associativos que evidenciam a relação entre membros. É uma aposta na transmissão, não na diplomação; na produção, não na filiação a uma instituição.
O termo vem do grego scholé (σχολή), que originalmente significava “ócio” — não no sentido de inatividade, mas de tempo livre para pensar, estudar, contemplar, conversar. Um tempo não utilitário, mas formativo. Scholé era espaço para o cultivo da alma e do pensamento. Ao contrário da concepção atual de escola como local de obrigações e normas, essa origem nos convoca a perguntar: qual o sentido de uma formação psicanalítica? Queremos “aprender” a ser psicanalistas?
Lacan retoma esse sentido originário ao definir a Escola como “um lugar de refúgio” e, ao mesmo tempo, uma base de operação contra o mal-estar na civilização. No Ato de Fundação, sublinha que o ensino é um dos pilares da Escola — mas um ensino que se articula ao inconsciente, e não à didática. Um ensino que se dá por transferência de trabalho, não por pedagogia. E essa transferência — na qual se supõe um saber — é o que mobiliza o desejo do analista.
Lacan não nomeia a Escola Francesa de Psicanálise como "instituição". Formula:
Esse título em minha intenção representa o organismo em que deve realizar-se um trabalho — que, no campo aberto por Freud, restaure a sega cortante de sua verdade... (Outros Escritos, 2003, p. 235).
A etimologia da palavra "organismo" remete ao termo grego ὄργανον, órganon — órgão ou instrumento, ferramenta. No Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia de Lalande, “organismo” é um ser vivo, considerado, sobretudo, enquanto composto de partes que podem realizar funções diferentes e coordenadas” (1999, p. 775). Lacan propõe a Escola como um organismo vivo e pulsante, regulado e sustentado pela sua dinâmica interna, onde o desejo do analista não seja sufocado pela normatização, mas possa vetorizar as produções de cada um. Portanto, a Escola seria o suporte de uma experiência, e não uma instância de poder. Não se trata de instituir para perpetuar, mas de fundar para que o desejo do analista se articule ao real do ato analítico — algo que não pode ser normatizado, nem reduzido a protocolos, técnicas fixas ou regras de conduta impostas externamente. Preserva o movimento do desejo e do saber em causa na experiência analítica.
“Instituição”, ao contrário, pode remeter à regulação de condutas, hierarquias, saber cristalizado. E foi justamente isso que Lacan recusou na IPA. Ao fundar sua Escola, propôs outro tipo de laço, outro modo de garantir — se é que podemos usar essa palavra — a formação psicanalítica.
Mas que garantias são possíveis? A Escola pode sustentar dispositivos — análise de controle, cartéis, transmissões clínicas, práxis psicanalítica, campos temáticos, assembleias científicas, estudos integrados — que podem potencializar o campo de produção no caminho da formação, através do compartilhamento com seus pares. Contudo, esses dispositivos não são seguros ou certificados. São pontos de sustentação diante do Real, que implicam limitações.
A incidência do Real é incontornável na Escola. Faz parte da transferência de trabalho, com sua face de resistência. Se não for acolhida, por meios simbólicos, cristaliza dispositivos, paralisa produções, esteriliza o movimento da formação. Esse Real se manifesta onde há resistência — à escrita, à fala, à participação. A própria psicanálise nasce desse impossível, desse Real, como Freud formulou em “Análise finita ou infinita” (Freud, 2017[1937]): educar, governar e psicanalisar são da ordem do impossível, pois lidam com o que falta, com o que escapa, com o que não se conclui.
Por isso, não falamos em cursos ou grades curriculares. Falamos de espaços de estudo em constante movimento. Um glossário permanente de conceitos, talvez — onde o saber não se estabiliza, mas se reinventa. Estudar, aqui, é desejar saber. É se deixar capturar por aquilo que resiste.
A palavra estudo vem do latim studium — aplicação do espírito para aprender, ou, em termos psicanalíticos, desejo de aprender. O que é “aprender”? É possível aprender a ser psicanalista? Não se trata de um “aluno” que aprende, mas de um sujeito em travessia. Não é dominar conteúdos, é se implicar no que escapa, e que justamente por isso, convoca. Sendo assim, a transmissão da psicanálise não se dá por aulas, mas por transferência — de trabalho, de desejo.
A Escola, nesse sentido, não é garantia de formação. Nenhuma instituição o é. O que ela pode — e deve — oferecer são dispositivos que sustentem esse percurso. Esses espaços não são fins em si mesmos, mas meios para que o desejo de saber encontre campo. E como se expressam, entre nós, os significantes Escola e Estudo? Como eles se atualizam nos nossos dispositivos? São espaços onde o desejo pode operar, ou se retrair. E aqui surge uma tensão: por um lado, a responsabilidade singular do analista sobre sua formação; por outro, a função da Escola como alteridade — um lugar que se coloca como referência quanto aos preceitos psicanalíticos e sua ética.
A passagem de Proponente a Membro, e de Membro a Membro-Clínico, condensa essa tensão entre reconhecimento institucional e autorização subjetiva. O princípio de que “o analista só se autoriza por si mesmo” — marco da proposta lacaniana — não elimina a função da Escola. Ao contrário, a tensiona, pois Lacan complementa que esse autorizar-se é “com os outros”.
A Escola de Estudos Psicanalíticos — como toda Escola que se sustenta na ética da psicanálise — não tem como missão garantir formações, mas possibilitar atravessamentos. Mais que isso: ela própria se funda sobre um Real — o Real da formação, o Real da transmissão, o Real da impossibilidade.
Que esta Palavra Inicial seja, portanto, mais do que um início. Que seja um compromisso: com o trabalho, com a escuta, com o desejo. Que seja uma aposta — não numa completude ilusória, mas num laço que se faz na falta. Um laço que se reinscreve a cada vez, no gesto sempre singular de dizer: aqui, ainda, a psicanálise tem lugar.
Referências
Freud, S. 2017(1937). A análise finita e a infinita. In S. Freud. Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica.
Lacan, J. 2003. Outros escritos. São Paulo: Zahar.
Lalande, A. 1999. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes.
Návia Terezinha Pattussi
Presidente da Escola de Estudos Psicanalíticos, gestão 2025-2027