As modificações na estrutura familiar clássica não significam o fim da família | Entrevista com Mario Fleig para a revista IHU

As modificações na estrutura familiar clássica não significam o fim da família

Entrevista com Mario Fleig
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8 de agosto de 2005

“Qual a função da família? Não seria a de estruturar novos sujeitos, fazendo a passagem da mera condição de cria humana pela inserção da linguagem e da fala, por um processo de humanização?”, pergunta o psicanalista Mario Fleig, professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia e graduação em Psicologia da Unisinos, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Assim, pensando a família fora dos padrões tradicionais com que a que a sociedade se acostumou, Fleig afirma que as modificações que se apresentam não ameaçam a família. E completa: “As novas formas de organização familiar requerem novas formas de pensar o exercício da função materna e da função paterna, não mais simplesmente coladas aos destinos da função biológica”. Mario Fleig é graduado em Psicologia pela Unisinos e em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, mestre em Filosofia pela UFRGS com a dissertação Os esquemas horizontais em Ser e Tempo, doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com a tese O tempo é a força do ser – Lógica e temporalidade em Martin Heidegger, e pós-doutor pela Université de Paris XIII (Paris-Nord), França, em Ética e Psicanálise.

IHU On-Line- No texto A tese do declínio da imago social do pai e o deslocamento da autoridade , o senhor afirma que “as patologias de nossa cultura podem ser compreendidas à luz não tanto do declínio da função paterna, mas de seus deslizamentos”. O que isso implica na concepção de autoridade paterna sob o aspecto da retomada do pai em Lacan?
Mario Fleig – A tese do declínio da função paterna, que situa, na queda do lugar paterno, a causa dos males na pós-modernidade, formulada no âmbito da psicanálise lacaniana, não pode ser aplicada precipitadamente. Caso se aceite esta tese, deveríamos voltar ao regime monárquico ou aderir aos fundamentalismos, que não cessam de afirmar o lugar prevalente da autoridade como sendo exclusivamente paterna. A queixa de que a insuficiência de pai provavelmente tenha atravessado a humanidade e supormos que, em outras gerações, havia mais pai do que hoje pode ser um consolo mítico. Se pai é uma função, como propõe Lacan, a função não pode ser mais forte ou mais fraca. Uma função, no sentido matemático, requer que seja operada. Então, a questão central é saber como se pode operar adequadamente esta função e quando sua operação é impossibilitada. Por isso, caberia, antes, termos uma idéia do que é a função paterna e no que ela importa para a estruturação do sujeito humano. Lacan, em sua investigação acerca do que constitui a organização do discurso psicótico, levanta a hipótese de que o organizador mínimo que carece em tal discurso é, precisamente, a operação da função paterna, ou seja, o significante pai falta na cadeia significante de tal discurso. E isso ele descreve como sendo a “forclusão” do nome do pai, ou seja, um discurso em que não está, em que não há operação, a referência ao terceiro, o que impede as operações de substituição e deslocamento na fala do sujeito. Os efeitos da ausência da operação da função paterna aparecem na fala e nos modos como se dá o endereçamento ao outro. Poderia ser, então, alguém que fala sem conversar, ou seja, alguém que está situado na linguagem, mas não consegue operar com o terceiro em sua fala, e então fica colado no discurso da certeza. Este é um modo de aparecer uma torção no discurso, com a entrada de uma progressiva impessoalização. Fala-se, mas já não se sabe mais quem fala e para quem se fala.

A desautorização da função paterna

O que proponho como sendo “a progressiva substituição da função paterna pelos modos de operar do discurso da ciência e seus corolários, como a exclusão do sujeito da enunciação” significa a entrada da racionalidade da ciência moderna, que se organiza na autoridade de um conjunto de enunciados acéfalos, isto é, que dispensa quem o enuncia na vida cotidiana. Isso já havia sido descrito por Max Weber como sendo o predomínio da racionalidade instrumental e também por E. Husserl com sua noção de “mundo vivido” (Lebenswelt) com uma tentativa de resgatar um fundamento para enfrentar a crise das ciências européias. Em outras palavras, a autoridade tende a se deslocar da pessoa que enuncia e que banca algo, no próprio ato de fala, para o funcionamento sem sujeito de um conjunto de enunciados justificados. Na vida cotidiana, significa dizer que algo afirmado como científico é tomado por verdadeiro e bom. Ou, quando um pai ou uma mãe querem exercer sua benéfica autoridade sobre o filho, este pede as razões do que é dito, ou os próprios pais o remetem para outro lugar, para a justificação do que dizem, ou para outra instância, a autoridade que poderia autenticar o enunciado. Trata-se, na prática, de uma crescente desautorização da função paterna. São pais que se demitem do exercício de sua função, e essa demissão é veiculada no modo de se endereçar a seu filho.

É interessante ver se esta hipótese permite uma leitura dos sintomas que emergem na contemporaneidade. A progressiva impessoalização do discurso, a crescente instrumentalização das relações, aliada àvelocidade da substituição dos artefatos (o instantâneo, a obsolescência programada, o descartável), e outros fenômenos oriundos da entrada do virtual, que efeitos produzem no sujeito e no laço social? Qual a consistência do outro nas relações? Será que a alteridade não estaria entrando também em colapso, na medida em que parece haver uma progressiva equiparação entre o objeto de consumo, rapidamente descartável, e a pessoa de meu semelhante?

Lacan e a paternidade contemporânea

Bem, são questões complexas, para as quais as respostas que conseguimos formular são precárias. O que me parece é que a hipótese lacaniana da função paterna poderia ser pertinente para situar os efeitos das mudanças aceleradas que vivemos e, assim, poder saber com o que estamos operando e como melhor operar. Umas das saídas que está sendo oferecida pela psicofarmacologia não me parece muito promissora: a busca de equilíbrio e limites por meio do uso generalizado de drogas, administradas a partir da tenra infância, só pode levar ao pior. No mínimo, abrirá de forma violenta a porta, já bastante devassada, que promete a solução dos impasses da vida pelo consumo de um objeto que se coloca boca a dentro, dispensando aquele caminho que as grandes tradições sempre indicaram, o caminho da fala endereçada ao outro. Ficaria, então, a pergunta: E como se opera a função paterna, mesmo no contexto presente marcado por esta nova economia psíquica? Isso seria uma outra conversa.

IHU On-Line – Como podemos definir a questão da autoridade paterna em função das modificações do núcleo familiar moderno, pensando, por exemplo, na união homossexual? Há umdeslocamento de autoridade do eixo masculino?
Mario Fleig – As modificações da estrutura familiar clássica não significam o fim da família. Qual é a função da família? Não seria a de estruturar novos sujeitos, fazendo a passagem da mera condição de cria humana por meio da inserção na linguagem e na fala, por um processo de humanização? Neste caso, dadas as novas configurações de família, talvez seja importante ver como se dá a operação de subjetivação e estruturação psíquica e, assim, como ter os cuidados indispensáveis para que isso se dê de modo adequado. Pressupor que a autoridade é um atributo do “masculino” é desconhecer o peso da autoridade do discurso materno. Precisamente contra a onipotência do discurso materno que se faz indispensável, para bem estruturar um sujeito, a entrada da referência terceira, que põe um limite ao Outro materno (também cabe lembrar que, como diz Lacan, a mulher é o sintoma do homem, ou seja, que este não se afirma em sua potência a não ser por seu endereçamento àquela). Contudo, a entrada do terceiro, o infans, somente é possível pela hipótese de que o Outro materno tem o mesmo valor daquele que, então, é reconhecido como pai, significante que não está sob o domínio materno. É o discurso da mãe que apresenta ou não um pai para a criança, reconhecendo neste valor e potência. Por isso é que não basta o reconhecimento biológico da paternidade para haver pai, assim como a destruição de um pai pode se dar pelo desreconhecimento feito no discurso materno (É o que se vê diariamente no discurso materno situado na psicose). Deste modo, o problema não se encontra na facticidade do casal hetero ou homossexual, mas em que medida, na relação de casal, há lugar para a disparidade, para a diferença. Ou seja, em que medida a criança não seria tomada como aquilo que faria a completude do casal. Isso significaria uma instrumentalização desta criança, o que não seria mais do que reeditar uma clássica forma de perversão. Ora, os casais ditos heterossexuais não estão livres de produzir uma tal intrumentalização e uso da criança. E também, não sabemos, em um caso “homossexual”, como se dá a disparidade sexual, e quem opera a função materna e a função paterna. Trata-se de função, que, para ser operada, precisa corresponder a um argumento justo, e não de papel, figura ou qualquer outra forma de representação.

IHU On-Line – Há que se repensar a questão do pai num mundo em tamanho processo de mudanças como o que vivemos hoje. Em que medida a psicanálise ajuda a entender esse processo de metamorfose?
Mario Fleig – A psicanálise, especialmente na formulação de Lacan, oferece a noção de função (retirada da lógica de Frege ) para tentar uma formulação a respeito de como se estruturam os sujeitos e o laço social. A hipótese básica é que o sujeito se estrutura com base no Outro, ou seja, a socialização da criança se dá, fundamentada nos outros privilegiados, fazendo-se necessária a operação da educação, para que se possa articular o real do corpo, a consistência da imagem de si e o simbólico da lei. Cada um de nós necessita uma amarragem destes três registros, e o fio disponível para isso é a linguagem com suas leis e a fala em sua função de endereçamento. Somos seres que se dirigem ao outro, que pedem algo, reconhecimento, atenção, desprezo, agressão, etc. e que, além disso, desejam algo que se articula em uma falta de obscuro objeto. Se isso não cessar, continuaremos humanos.

IHU On-Line – Quais as intersecções entre autoridade paterna, responsabilidade e autonomia?
Mario Fleig – O advento da noção de autonomia do indivíduo na modernidade redimensiona o problema da responsabilidade e as condições de imputabilidade dos atos e omissões praticados pelo sujeito. Responsabilidade, que, etimologicamente, significa a capacidade de responder por (do latim, respondere), pressuporia um agente que fosse senhor de suas escolhas, isto é, que soubesse e que quisesse seu ato. Entretanto, com o advento da noção de inconsciente, como fica a questão da responsabilidade? Como pode alguém ser responsável pelo ato que realiza sem ter ciência do mesmo e sem seracompanhado de um ato de volição? Diante da hipótese do determinismo inconsciente de nossos atos, haveria ainda lugar para a noção de responsabilidade? Como podemos, ainda assim, atribuir responsabilidade ao que fazemos, mesmo não sabendo e não querendo fazer o que fazemos?
Por outro lado, encontramos, na atualidade, uma crescente desresponsabilização, de modo a parecer que não há mais alguém que responda por. Situaríamos aí algo que se pode denominar de patologias da responsabilidade. O que se pode pensar disso, que por esta crise dos enquadres de responsabilidade: quem responde pelo quê? Que responsabilidade os pais assumem e que responsabilidade a escola assume? Quem é responsável pelos males que assolam a humanidade?
Falar em patologias da responsabilidade requer repensar o conceito de pathos, formulado na tragédia grega, e em que implica um sofrimento que porta um ensinamento. De que modo a noção trágica do psicopatológico pode nos ajudar a lidar com as patologias da responsabilidade? Haveria um tratamento possível para a desresponsabilização? Que diferença existe entre o drama e o trágico na constituição da experiência da dor e do sofrimento? As estratégias tiradas da dialética “crime” e “castigo” ainda têm chances de subjetivar a responsabilidade?
Afinal, como é que um sujeito se torna responsável? Que operações são necessárias para que isso aconteça? Seria diferente da subjetivação de outras estruturas, como a dor, o medo, a vergonha, o pudor, a intimidade, a enunciação, etc. Em que medida e como a operação transitivista do golpe de força (proposta desenvolvida pelos psicanalistas Jean Bergès e Gabriel Balbo ), posta em ato por um outro privilegiado, pode instaurar a responsabilização em um sujeito? Seria isso possível? Seria possível interromper o enunciado “não vai dar nada…”, característico da desresponsabilização generalizada? Como interromper a vertiginosa escalada de danos em que se lança o sujeito que flerta com o risco? Como conceber um trabalho psicológico e social que vise à redução de danos em indivíduo em situação de risco?

IHU On-Line – Há algum outro aspecto que queira comentar e não foi perguntado?
Mario Fleig – Não há pai sem seu reconhecimento e este começa com a referência introduzida pelo discurso materno endereçado aos filhos. Em retorno, é a existência dos filhos que assinala o lugar paterno, assim como os filhos não existem sem o endereçamento que lhe faz um pai. São lugares que se constituem ou se anulam reciprocamente, sem que isso signifique o apagamento da disparidade. Assim, as novas formas de organização familiar requerem novas maneiras de pensar o exercício da função materna e da função paterna, não mais simplesmente coladas aos destinos da função biológica.

FLEIG, M. A tese do declínio da imago social do pai e o deslocamento da autoridade. In: A psicanálise, a educação, e os impasses da subjetivação, 2000. São Paulo. Anais do II Colóquio do Lugar de Vida/ LEPSi. São Paulo: Editora da USP, 2000. v. 1. p. 185-198. (Nota da IHU On-Line)

Maximillion Weber (1864-1920): sociólogo alemão, considerado um dos fundadores da Sociologia. Ética protestante e o espírito do capitalismo é uma das suas mais conhecidas e importantes obras. A edição brasileira mais recente foi publicada em 2004, pela Companhia das Letras, Rio de Janeiro. Com o título Max Weber: a ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Cem anos depois, a IHU On-Line dedicou-lhe a sua 101ª edição,de 17-05-2004. De Max Weber o IHU publicou o Cadernos IHU Em Formação nº 3, 2005, chamado Max Weber – o espírito do capitalismo. Em 10 de novembro de 2005, o professor Antônio Flávio Pierucci ministrará a conferência de encerramento do I Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da Economia, promovido pelo IHU, intitulada Relações e implicações da ética protestante para o capitalismo. (Nota da IHU On-Line)

Edmund Husserl (1859-1938): filósofo alemão, principal representante do movimento fenomenológico. Marx e Nietzsche, até então ignorados, influenciaram profundamente Husserl, que era um crítico do idealismo kantiano. Husserl apresenta como idéia fundamental de seu antipsicologismo a “intencionalidade da consciência”, desenvolvendo conceitos como o da intuição eidética e epoché. Pragmático, Husserl teve como discípulos Martin Heidegger, Sartre e outros. (Nota da IHU On-Line)

Lógica de Frege: A grande contribuição de Friedrich Ludwig Gottlob Frege, matemático e filósofo alemão, para a lógica matemática foi a criação de um sistema de representação simbólica (Begriffschrift, ou ideografia) para representar formalmente a estrutura dos enunciados lógicos e suas relações, e a invenção do cálculo dos predicados. Ele parte da decomposição funcional da estrutura interna das frases (substituindo a velha dicotomia analítica sujeito-predicado, herdada da tradição lógica aristotélica, pela oposição matemática função-argumento) e da articulação do conceito de quantificação (implícito na lógica clássica da generalidade), tornando, assim, possível a sua manipulação em regras de dedução formal. (os enunciados “para todo o x”, “existe um x” que denota operações de quantificação sobre variáveis lógicas, têm a sua origem no seu trabalho fundador). Ao contrário de Aristóteles, e mesmo de Boole, que procuravam identificar as formas válidas de argumento, a preocupação básica de Frege era a sistematização do raciocínio matemático, ou dito de outra maneira, encontrar uma caracterização precisa do que é uma “demonstração matemática”. Frege havia notado que os matemáticos da época freqüentemente cometiam erros em suas demonstrações, pois supunham que certos teoremas estavam demonstrados, quando na verdade não estavam. Para corrigir isso, Frege procurou formalizar as regras de demonstração, iniciando com regras elementares, bem simples, sobre cuja aplicação não houvesse dúvidas. O resultado que revolucionou a lógica, foi a criação do cálculo de predicados ou lógica dos predicados. (Nota da IHU On-Line)