Biografia de Lacan | Sônia Maria Perozzo Noll

Biografia de Lacan

Sônia Maria Perozzo Noll

O presente trabalho trata do enfoque pessoal e resumido extraído da leitura do livro: “Jacques Lacan – Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento (Elisabeth Roudinesco)”, sem pretender, no entanto, esgotar ou emitir uma idéia ou senso conclusivo de sua mensagem e/ou conteúdo.

“Lacan procurou introduzir a peste, a subversão e a desordem no âmago de um freudismo moderado no qual era contemporâneo: freudismo que após ter sobrevivido ao fascismo, soubera adaptar-se a democracia a ponto de não mais reconhecer a violência de suas origens”.

Família de origem:

Em 1865, Émile Lacan, que vinha de uma família de comércio de tecidos e gêneros alimentícios, casou-se com Marie Julie Dessaux, filha de um grande empresário do comércio de vinagre. Tiveram quatro filhos, René, que morre aos 28 anos, Marie, Eugene e Alfred.

Alfred (pai de Lacan), casa-se em 23 de junho de 1900 com Émilie Philippine Marie Baudry, cujo pai foi funileiro e viveu de rendas. Tiveram quatro filhos. O primeiro foi Jacques Marie Émile Lacan (1901), depois Raymond, que morre aos dois anos de hepatite, após Madeleine Marie Emannuelle (casou-se com Jacques Halan) e Marc-Marie (Marc-Francóis). Em 1926, Marc-Françóis tornou-se monge, quando Jacques escandalizava a família com libertinagem e movimentos anticristo.

Negociantes de vinagre, no coração de Orleans, de pai para filho, a família da avó de Jacques Lacan tinha um modelo de organização fundado no paternalismo, no culto da ordem moral e na obediência à religião. Em 1880 a família de Loudovic promulgou um regulamento interno com 13 pontos indispensáveis ao funcionamento da firma, baseado na devoção, limpeza, pontualidade, com trabalho de 11 horas ao dia e 6 dias por semana.

O avô Émile era trabalhador, econômico, temperamental e autoritário, que trabalhava na firma de vinagre de Loudovic, e que desposou a filha do patrão. Para um filho de dono de mercearia, uma promoção como essa não era negligenciável. Émile era submisso à esposa e esta obedecia, de maneira rígida, a todos os dogmas da igreja católica.

Alfred, pai de Lacan, foi enviado, na juventude, como interno ao pequeno seminário de Notre-Dame dés Champs. Saiu de lá com rancor em relação aos pais, culpando-os por tê-lo privado do calor de um lar. Na idade de trabalhar foi integrado a atividade florescente da casa Dessaux (Firma de vinagre). Manifestou-se um perfeito representante dos ideais da firma, mas manifestava pouco gosto pela cultura. Era gorducho e bigodudo e tinha traços banais de um pequeno comerciante da Bélle-Époque, esmagado pela onipotência paterna.

Émilie (mãe de Lacan), educada numa escola religiosa. Tinha gosto pela austeridade, sempre vestida de preto, era magra, de olhos tristes e parecia habitada por um ideal cristão que contrastava com a religiosidade simples e provinciana da família Dessaux.

Depois de quatro filhos, Émilie foi acometida de dores abdominais que a obrigaram a uma operação e renunciar a ter outros filhos. Com o nascimento do primeiro filho, Jacques Lacan, Émilie contratou os serviços de uma jovem governanta Pauline, com preferência após o nascimento dos outros filhos, pelo pequeno Marc. Jacques, que era chamado de Jacquot, ficou com ciúmes, embora fosse o preferido da mãe.

Aparentemente a família vivia num lar unido pela devoção, mas logo apareceram os conflitos. Émilie não se entendia com a sogra Marie Julie, que julgava demasiada autoritária em relação à Alfred e não suportava as cunhadas.

O pai de Lacan sucedeu seu pai nos negócios e se tornou um fino conhecedor das regras do comércio parisiense. Mas, dos anos de infância, no seio de uma família normal e conformista, Jacques guardou uma lembrança terrível, educado num clima de religiosidade sufocante e dos perpétuos conflitos domésticos (não gostava da forma como os avós paternos tratavam seu pai), criticava o avô que desprezava e, de quem fará publicamente um retrato de violência inusitada, um ano após a morte do pai.

Escolaridade de Lacan

Lacan recebeu na sua vida escolar uma formação clássica, pouco aberta ao espírito das luzes. Em filosofia, Descartes ocupava o lugar de honra. Fechado à modernidade e centrado num cartesianismo cristão.

A partir de 1915 a guerra irrompe na vida monótona da família Lacan. Alfred cuidava das provisões alimentares do exército e Émilie substituía suas funções na firma Dessaux.

O pátio do colégio fora transformado em alojamento para feridos da guerra e isso talvez tenha despertado o desejo de uma carreira médica do filho de Alfred (Jacques Lacan).

Lacan era excelente aluno, intimidava até os professores, era o primeiro em tudo, belos olhos, seriedade e malicia. Arrogância era o traço principal desse adolescente que não se interessava pelas brincadeiras da infância.

O comentário dos professores é que ele tinha caprichos de imaginação, um pouco vaidoso, às vezes inoportuno e, sobretudo incapaz de organizar seu tempo e de se comportar como os outros. Seguidamente ausente por razões de saúde, fugia diversas vezes das aulas e padecia de uma espécie de tédio que se misturavam langor e deleitação melancólica.

Com o irmão casula mostrava-se paternal.

Aos 17anos teve sua primeira relação sexual com uma cliente de seu pai.

Numa crise de melancolia, na adolescência, rejeitou o universo familiar e os valores cristãos e por volta de 1923 ouviu falar das teorias de Freud.

Alfred e Émilie começaram a inquietar-se com as atitudes do filho que desprezava suas origens, vestia-se como um dânge e imaginava-se um rastignac (herói de Balzac).

O abandono da religião e da fé se concretizaram ainda mais quando em 1925 começou a ler Nietzsche em alemão.

Os três filhos de Alfred romperam, cada um a sua maneira, os laços que os uniam à família. Jacques por uma ruptura intelectual, a segunda filha por uma permanência prolongada em um país distante e o terceiro pelo sacerdócio.

No momento em que Lacan iniciava a carreira medica, havia, de um lado, a via médica e o grupo da evolução psiquiátrica, em 1925. Em 1926 iniciou a sociedade psicanalítica de Paris. Do outro lado a via intelectual, a das vanguardas literárias e filosóficas.

Do lado da via intelectual, buscava-se transformar o homem por meio da onipotência do desejo, inventou-se a utopia de um inconsciente enfim aberto às liberdades e admirou-se acima de tudo a coragem com que um austero cientista havia ousado pôr-se a escuta das pulsões mais intimas do ser, desafiando o conformismo burguês e correndo o risco do escândalo e da solidão.

Lacan fez um percurso clássico passando da neurologia para a psiquiatria e levou mais ou menos oito anos até ser membro da sociedade de psicanálise.

Seus mestres em psiquiatria foram Georges Dumas (adversário da psicanálise), Henri Claude (rival de Dumas) e Gaëtan Gatian de Clérambault.

Henri Claude rejeitava o antifreudismo, era o chefe indiscutível da clinica de doenças mentais.

Clérambault defendia a síndrome do automatismo mental de origem orgânica onde as perturbações se impunham ao sujeito de maneira externa e brutal, como um automatismo. Compartilhava com Freud e os surrealistas a idéia de que a loucura era vizinha da verdade, a razão da desrazão e a coerência do desregramento (se suicidou).

Com os três mestres Lacan adotou atitudes diferentes. Com Henri Claude, grande burguês sem talento, mas chefe que lhe poderia ser útil, conduziu-se como aluno submisso, adulou seu narcisismo dando-lhe sempre razão do auto de uma superioridade zombeteira.

Com Dumas mostrou-se muito respeitoso, admira-lhe o gênio clinico e procurava seduzi-lo.

Com Clérambault, mantinha uma conflituosa relação de amor e ódio. Clérambault acusou Lacan de plagio. Com incrível desplante Lacan voltou a acusação sobre o mesmo. O caso deu muito que falar, pois Lacan tinha um notável senso de publicidade.

Nos estudos sobre o surrealismo, Lacan tomou conhecimento do primeiro numero de surrealismo ao serviço da revolução em julho de 1930 um texto de Salvador Dalí. É em seu quadro que dá a idéia de uma imagem dupla, ou seja, a representação de um objeto que sem a menor modificação figurativa ou anatômica, fosse a representação ao mesmo tempo de um outro objeto absolutamente diferente.

Para Dalí, a paranóia funcionava como uma alucinação, ou seja, como uma interpretação delirante da realidade. Fenômeno pseudo-alucinatório, com imagens duplas, assim um cavalo poderia representar também uma mulher. Paranóia como erro de julgamento e delírio racional. Todo o delírio já é uma interpretação da realidade e toda a paranóia uma atividade criadora lógica.

O ano de 1931 -1932 foi uma época de transição para Lacan. Ele começou a efetuar uma síntese, a partir da paranóia, de três domínios do saber: a clínica psiquiátrica, a doutrina freudiana e o surrealismo. Daí vai elaborar a tese de medicina que será sua grande obra da juventude. “de la psychose paranoïque dans ses rapports avec la personnalité” (Da psicose-paranoica em suas relações com a personalidade).

Vida Pessoal

Na vida amorosa , Lacan teve sua primeira experiência sexual aos 17 anos com uma cliente de seu pai.

Em 1928 Lacan estava interno, como residente no hospital Sainte-Anne. Habitava um quarto modesto, feio e escuro e, mantinha um relacionamento com Marie-Thérèse Bergerat, que era uma viúva austera e, 15 anos mais velha. Com ela descobriu as obras de Platão e fez várias viagens de estudo.

Em 1929 apaixona-se por Olesia Sienkiewkz, segunda mulher de seu amigo Pierre, que era filha de banqueiro, educada de forma fina e refinada.

Nesse período, Lacan passa por momentos muito difíceis. Amava Olesia, mas não conseguia separar-se de Marie-Thérèse e,quando separado dela, passa por momentos de muita angústia e buscava exorcizar seu tédio.

Aos 27 anos, Lacan é despertado por um novo amor, Marie-Louise Blondin (Malou), pintora da burguesia. Lacan era amigo de seu irmão Sylvain que admirava como o duplo de si mesmo.

Fisicamente Lacan era extremamente sedutor, alto, magro, ágil, esperto, gostava de gravatas borboletas e tinha cabeleira loira e ondulada, operava com a mão esquerda. Durante toda a vida, não fez exame de motorista, usava limusines ou táxis.

Casou-se com Malou em 29 de janeiro de 1934. Na lua-de-mel enviou telegrama para Olesia para reparar por tê-la abandonado. Lacan era incapaz de abandonar uma mulher quanto de permanecer-lhe fiel. A ruptura com Olesia jamais se consumou.

Em fevereiro de 1934, Lacan conheceu Sylvia Bataille, na volta de sua viagem de núpcias. Se encontraram mais uma vez em novembro de 1938, cruzaram-se por acaso e não mais se deixaram. Naquele dia, tiveram um pelo outro uma verdadeira paixão súbita. Lacan era então amante de outra mulher.

Em 1936 Malou teve a primeira filha com Lacan, que se chamava Caroline e Lacan acrescentou o segundo nome de Image (referencia ao estádio do Espelho). Neste período a vida de Lacan com Malou era aparentemente tranqüila e muito feliz com sua função de pai e, assim a filha Caroline era segura e sua autoridade foi em decorrência da felicidade de sua primeira infância, onde foi a preferida da mãe, do pai e do tio Sylvain.

Durante dezoito meses a experiência da paternidade deixou-o muito feliz, vindo após três anos de casados, porem a filha não apagou nenhum mal-entendido do casamento.

Ao apaixonar-se por Sylvia, Lacan afastava-se de um mundo que já não era mais inteiramente o seu, o da alta burguesia médica parisiense, marcado pelo culto da fortuna, os valores do dinheiro e o sentimento de ser a elite da nação.

Renunciara esta vida, por uma maneira de ser menos conformista, menos rígida e mais boêmia.

Essas duas mulheres tão diferentes tiveram um ponto em comum, ambas destruíram numerosas cartas que Lacan lhe escreveu e nas quais falava de sua doutrina e de suas opiniões sobre as coisas e as pessoas.

O segundo filho de Lacan nasceu após dois anos e se chamava Thibaut, quando os pais ainda se entendiam.

Em setembro de 1939 Lacan estava preocupado com seus amores, com Sylvia, com suas dificuldades conjugais com Malou e com o estado de saúde de seu filho, então com um mês de vida.

Malou não ignorava que Lacan lhe era infiel a muito tempo, mas parecia não saber que o momento em que soubera de sua gravidez coincidira com a paixão súbita entre Sylvia e Lacan.

O filho teve que se submeter a uma cirurgia (estenose no piloro) que o acometia em vômitos, perda de peso que resultou numa operação bem sucedida.

Ele dizia que o perigo que pesava sobre seu filho afastava todos os outros, mas que a criança havia manifestado desejo de sobreviver, chamava o filho de o valente e também elogiava Malou pelos cuidados com filho.

Em 1940 Malou ficou grávida novamente acreditando reatar os fios de uma historia que rumava ao desastre (período da segunda guerra mundial).

No final de 1940 Sylvia engravida de Lacan o qual conta a Malou, sem preocupar-se com o fato de que esta, no oitavo mês de gravidez estava a ponto de dar a luz. Já muito machucada pela existência dessa ligação, a qual tentara em vão, por fim, ela não suportou a crueldade daquele a quem continuava a amar e desmoronou sob o peso da humilhação tomada por uma depressão, Malou deu a luz a uma menina chamada Sibylle.

O homem que Malou havia escolhido, idealizando-o ao extremo, e com a certeza de que teria dele filhos inteligentes, não estava a altura das aspirações dela. Ele não apenas era sedutor, libertino, caprichoso e impossível de satisfazer, mas também habitado pelo sentimento de ser um gênio portador de uma grande obra e por um imenso desejo de ser reconhecido e tornar-se celebre. Assim, só pensava em si mesmo e nos próprios trabalhos.

O fascínio que exercia a sua volta originava-se da extrema rapidez de sua inteligência e da infinita lentidão de suas atitudes corporais. Sempre imerso em seus pensamentos, Lacan era ao mesmo tempo tirânico e sedutor, inquisidor e angustiado, obcecado pela verdade, coisas que o tornavam inapto àquela fidelidade conjugal que Malou teria desejado.

O divorcio, pedido por Malou foi pronunciado em 15 de dezembro de 1941.

Em 03 de julho de 1941 Sylvia deu a luz a uma menina chamada Judith Sophie, que não recebeu o nome de Lacan em função do primeiro casamento de Sylvia.

Não há duvida de que sua teoria do nome do pai, que formara o pivô da doutrina lacaniana encontrou um de seus fundamentos no drama dessa experiência vivida em meio aos escombros e a guerra.

Ao morar no bairro da inteligência literária, em sua nova vida com Sylvia, ele rompia com a tradição do meio psicanalítico parisiense.

Malou conseguiu que Lacan renunciasse sua autoridade de pai. Pensava em puni-lo por tê-la abandonado, mas decidiu esconder dos filhos a verdade. Assim, toda quinta feira ele almoçava com Malou e os filhos no modesto apartamento do VII distrito.

A primeira filha de Lacan com Malou, Caroline passou a conviver com o tio Sylvain onde conheceu seu enteado que virá a ser seu futuro marido (casam-se em 1958).

Caroline teve uma primeira infância feliz, era então segura, altiva e elegante, segura de sua inteligência e de sua pertença à elite, fez carreira no ramo de imóveis, porém não teve com seu pai um verdadeiro relacionamento intelectual, não lia o que ele escrevia e não teve acesso a compreensão da obra e do ensino do pai.

Thibaut e Sybille sofreram mais com essa situação de clivagem, marcado desde o inicio pela dor melancólica da mãe, e também pelos conflitos entre a realidade imaginaria de um mundo paterno cuja existência lhe era ocultada e a realidade concreta de um mundo cotidiano regido pela lei do fingimento. Com isso tiveram dificuldades de integração em termos sociais e na própria identidade.

Assim como a conduta de Malou, também a família dos pais de Lacan fingia não ver os relacionamentos na vida de Lacan.

Por volta dos preparativos do casamento da filha Caroline em 1958, Malou e Lacan decidiram pôr fim ao reinado de fingimento entre as duas famílias mas a rivalidade não cessou de crescer.

Em 21 de novembro de 1948, a mãe de Lacan faleceu após uma cirurgia de histerectomia por complicações pós- operatória.

Após um período em que Lacan e Sylvia moraram no mesmo apartamento, o apartamento 03 ficou sendo o domicilio de Sylvia onde eram oferecidos jantares e recepções e, o apartamento 05, o de Lacan, onde ele trabalhava, recebia as amantes e conduzia as analises embora fizesse as refeições no apartamento 03 com Sylvia.

Em 1951 Lacan adquiriu uma encantadora casa de campo em Guitrancourt, onde se refugiava aos domingos para trabalhar, mas também recebia pacientes ou oferecia suntuosas recepções. Lacan adorava representar diante dos amigos, dissimular-se, dançar, dar festas e usar roupas extravagantes. Ali construiu uma imensa biblioteca e colecionou obras de arte. Lacan também sempre teve paixões por viagens.

Lacan tinha verdadeira adoração pela filha Judith, pó isso era criticado pelos colegas, pois agia de forma contraria a doutrina edipiana.

Com a oficialização da separação de Sylvia com seu primeiro marido, Bataille, aos 45 anos de idade, Lacan buscou na justiça legalizar o nome de sua filha Judith. Em 1962, move um processo que permitisse a Judith ser legitimada por seu pai. Essa legislação se efetivou no dia em que Lacan fazia sua entrada na “Escola Normal Superior” para pronunciar seu discurso sobre A Excomunhão, no momento em que foi forçado a deixar a IPA.

Na sala Dussani onde falava, naquele 15 de janeiro diante de uma nova audiência, achava-se presente seu futuro genro Jacques Alain Miller, que desposará Judith em 12 de novembro de 1966. Portanto a filha só usou o nome do pai por dois anos.

Em 15 de outubro de 1960, com 87 anos morre o pai de Lacan, Alfred, sem sofrimento, em conseqüência de uma ruptura de aneurisma.

Graças às preciosas recordações do irmão de Lacan, Marc Françóis, sabe-se muito bem hoje que o conceito do nome do pai reside no lugar ocupado por Émile Lacan, no interior da genealogia familiar. Jacques execrou a vida toda esse “horrível personagem” graças ao qual tivera acesso numa idade muito precoce a função fundamental de maldizer a Deus. A esse avô de quem trazia o pré-nome em seu registro civil, ele recriminava ter-se comportado como um tirano em relação a Alfred que se tornou assim inapto para o exercício da paternidade. Educado por esse pai temível, Alfred mostrara-se um pai afetuoso, devotado e cheio de boa vontade, mas incapaz do menor interesse pelo gênio intelectual do filho mais velho, que ele considerava um ser volúvel e irresponsável.

É nessa posição enfraquecida de seu pai que ele evocou o declínio inelutável da imago paterna, revalorização da função simbólica do pai.

Em dezembro de 1969, o filho de Lacan Thibaut, casado pela segunda vez teve seu primeiro filho homem, que recebeu o nome de Pierre, o qual receberia o nome de Lacan. Jacques ficou felicíssimo, porém a criança morreu três dias após o nascimento.

Outro luto atroz ocorre em 30 de maio de 1973, sua filha Caroline morre num acidente automobilístico.

Em 13 de novembro de 1980, Lacan ditou e depois assinou perante o tabelião e duas testemunhas um testamento pelo qual instituía como herdeira universal a filha Judith e em caso de falecimento anterior, os filhos dela. Nomeava Jacques-Alain Muller executor testamentário de sua obra publicada e não publicada, sem nenhuma instrução concernente a esta.

Lacan morre numa quarta-feira, 09 de setembro, as quinze para meia-noite. Teve tempo de pronunciar estas palavras: “Sou obstinado… Eu desapareço”.

Morto sob falso nome, depois declarado morto, no registro civil, num domicilio onde não havia morado e do qual era simplesmente o co-locatário: tal foi o destino último desse grande teórico da verdade.

Vida Privada e Vida Pública

Quarenta anos após a publicação de sua tese, o caso Aimée o havia levado a psicanálise, embora ele tenha se apropriado da doutrina da psicanálise, ainda não fazia parte dela. Em 1932 começou a freqüentar o divã de Rudolph Loewenstein.

Sobre seu analista, dirá que jamais será seu mestre, quando muito será para ele um didata decepcionante no mais puro estilo da IPA- anos 30.

Lacan não era um analisando comum, era um homem livre e essa liberdade transbordava de todos os lados. Não conhecia entraves, nem limites e nem censura. Se diz analisado não sobre um divã qualquer, mas um divã ortodoxo e regulamentar.

Lacan chegou na idade viril com apenas sofrimentos burgueses: insatisfação perpétua, impaciência exacerbada, sofrimento de não saber ainda dominar o universo (neuroses cotidianas). Ele não havia conhecido a privação, a fome, a miséria, a ausência de liberdade, a perseguição (como os judeus).

Lacan era uma espécie de anti-herói, inapto a normalidade, prometido a extravagância e incapaz de obedecer a multidão de comportamentos comuns.

Entre Lacan e seu analista, homens tão diferentes havia um ponto em comum: ambos eram materialistas, ambos tinham aceitado a grande lição freudiana do universalismo, da morte de Deus e da crítica as ilusões religiosas.

Lacan sempre guardara segredo de sua passagem pela supervisão, a ponto de seu genro e seus familiares jamais terem ouvido falar do fato antes que nos fosse revelado com certeza, em junho de 1982, por Germaine Guex. Não significa que a supervisão não tenha ocorrido.

Sua analise durou seis anos, várias vezes por semana, de junho de 1932 a dezembro de 1938.

Se Lacan concebia a liberdade sob o aspecto de um longo desdobramento do desejo, Loewenstein via-a de maneira oposta. Para ele a conquista da liberdade não era se não a aquisição de um direito, uma necessária vitória obtida sob a intolerância.

Loewenstein, puro técnico da grande pátria da IPA, submetia-se a fé comum sem renunciar suas paixões. Amante de uma princesa da qual será a seguir o analista (Marie Bonaparte), após ter sido o do seu filho, ele defendia as regras das quais se dizia o defensor. E nisso se assemelhava a Lacan, seu mais poderoso rival, porém ao contrario deste, acreditava que a submissão as regras servia ao exercício da psicanálise freudiana da qual a IPA tornara-se a Terra Prometida.

Lacan não se importava com isso, não sentia necessidade de obedecer a menor regra. Para ele, a IPA só garantia a legitimidade freudiana.

Loewestein fez alusão apenas uma vez, por escrito, à analise de Lacan “segundo ele o homem era inanalisável”.

Lacan disse de Loewestein, que ele não era inteligente o bastante para analisá-lo. “teve a impressão de fazer uma analise”.

Lacan tornou-se membro efetivo da SPP em 20 de dezembro de 1938, contra a opinião de seu analista e com o apoio de Pichon, como também abandonou o divã assim que pode, após ter prometido continuar. Enfim, tornou-se para França o mestre do pensar que Loewestein não havia sido.

Durante a duração da analise Lacan permanecia um marginal (a margem), não produziu nenhum texto importante, do mesmo modo, esse período vazio que se abre a um sistema filosófico, que se tornou um período de latência.

Com o Fascismo, e a perseguição dos judeus, em 1938 apoiada por Jones, a operação de salvamento levou a demissão forçada dos últimos membros judeus da DPG, num encontro em 13 de março de 1938 onde Freud e seus companheiros se reuniram para encerrar as atividades da sociedade e Lacan não foi convidado.

Na Escola de Filosofia

Lacan participou das reuniões dos grupos filosóficos a partir de 1933/1934 quando começou a freqüentar o seminário de Kojève e a filosofia heggeliana.

Teve influencias de Alexandre Koyré que defendia a tese de que era preciso renunciar a uma historia das ciências puramente interna e mostrar que o conhecimento humano não evolui, como se crê, no sentido da busca de um modelo cada vez mais conforme a uma realidade cuja a existência bastaria descobrir para provar que o espírito humano dele se aproxima por uma série de progressos sucessivos.

A concepção de um universo infinito e autônomo derrubava as provas tradicionais da existência de Deus ao desalojar o sujeito de seu lugar central no mundo, no qual, ele era obrigado a buscar Deus em si mesmo.

A fundação do Cogito cartesiano numa tradução filosófica orientada em torno da verdade e liberdade, onde o sujeito é livre, sem apoio exterior a si mesmo, ele é forçado a experiência de uma verdade jamais limitada por uma autoridade pré-existente qualquer. Minha existência como consciência do mundo.

Há um retorno às raízes originais do ser, seja no surgimento de um nada, símbolo trágico de uma finitude moral da existência humana, despojada de toda a transcendência. Recriminava-se por cultivar o nada do ser, e o nada do devir, para chegar a certeza do nada da morte. Portanto, ele era visto como doutrina patológica e ate mesmo obscurantista.

Heidegger filósofo alemão, foi o primeiro a ousar, nessa época de pós-guerra trazer a filosofia do céu para a terra, falar-nos de nós mesmos; falar-nos – como filosofo – de coisas muito banais e muito simples: da existência e da morte; do ser e do nada; ele soube recolocar, com um frescor e uma força incompatíveis, o duplo problema eterno de toda a filosofia verdadeira, problema do eu e problema do ser: quem sou eu? E o que quer dizer ser? O empreendimento de Heidegger consiste, sobretudo no valor e importância do empreendimento de demolição. As analises de o ser e o tempo são uma forma de catarse libertadora e destrutiva. Elas tomam o homem em seu estado natural. Tem por objetivo sua percepção das coisas, as coisas mesmas, a linguagem, o pensamento, o devir, e o tempo. Mostram-nos a obra do agente. Guiam-nos para a fogueira final do nada, onde desaparecem todos os falsos valores, todas as convenções, toda a mentira, e na qual o homem está inteiramente só, na grandeza trágica de sua existência solitária: em verdade e frente à morte.

Esse empreendimento de destruição e de nadificação ia em sentido oposto a toda teologia, mesmo negativa, pois, como assinalava Koyré, o nada heideggeriano não era nem Deus e nem o absoluto: apenas um nada que tornava trágica a grandeza da finitude humana.

Com seus estudos de filosofia Lacan participou pela primeira vez de um congresso da IPA em Mariembad, cidade próxima à Áustria, no momento em que Jones estava acabando de liquidar a psicanálise na Alemanha. O tema O estádio do espelho, num período de oposição entre Melanie Klein e Anna Freud.

Por volta de 1936, o homem mais poderoso da Sociedade Psicanalítica, depois de Jones, era Eduard Glover (grandes controvérsias londrinas dos anos de guerra).

Nesse período (1936) Klein buscava construir uma doutrina da estrutura do sujeito, do seu imaginário, que respondia às interrogações de toda uma época. Lacan, fazendo parte de uma segunda geração psiquiátrico-psicanalista francesa, havia questionado a doutrina das constituições que separavam artificialmente o normal e o patológico, buscava resolver o enigma da condição imaginaria do homem explorando os elementos mais arcaicos da relação de objeto. Lacan se apoiava num saber exterior ao freudismo: psiquiatria, surrealismo e filosofia.

A partir de 1933, Lacan fez uma segunda leitura de Freud, para no ano seguinte, levar em conta os trabalhos de Klein e a perceber-se que a “grande dama”, colocava as mesmas questões, do estatuto do sujeito, estruturação das relações de objeto, papel arcaico da ligação edipiana, posição paranóica do conhecimento humano, lugar do imaginário, etc.

Depois em 1966, por ocasião dos Escritos que ele diz: foi no congresso de Mariembad em 31 de julho de 1936 que se colocou esse primeiro pivô da nossa intervenção na teoria psicanalítica: buscou a noção de Wallon, de estádio do espelho para transformá-la de cima a baixo.

Wallon aderia à idéia darwiniana segundo a qual a transformação de um indivíduo em sujeito passa pelas desfiladeiras de uma dialética natural. No quadro dessa transformação, que para a criança consciste em resolver seus conflitos, a experiência dita do espelho é um rito de passagem que ocorrem entre 06 e 08 meses de vida. Ela permite a criança reconhecer-se e unificar seu eu no espaço. A experiência especifica assim a passagem do especular ao imaginário e posteriormente do imaginário ao simbólico.

O Estádio do espelho torna-se uma operação psíquica numa identificação com seu semelhante quando percebe, em criança sua própria imagem no espelho. O estádio do espelho no sentido lacaniano seria assim a matriz, por antecipação, do de vir imaginário do eu. É em 1937, num comentário de uma conferência de Marie Bonaparte que Lacan oferece a melhor definição dessa noção um ano antes de incluí-la no texto sobre os complexos familiares.

Em 03 de agosto de 1934 num clima de confronto entre os Anna freudianos e os Kleinianos, Eduard Glover dissociava-se publicamente das teses de Klein apoiado por Melita. Então Lacan, neste congresso tomou a palavra na segunda sessão cientifica e dez minutos depois Jones interrompeu seu discurso no meio de uma frase.

Em 1966, nos Escritos, Lacan reescreve e, sua cólera ainda estava tão viva que não deixou de anotar a hora e o dia onde ousaram cortar-lhe a palavra. Depois de não ter sido reconhecido por Freud por ocasião do envio de sua tese.

O texto dos Complexos Familiares, onde constava o estádio do espelho foi redigido aos 35 anos quando iria ser pai pela primeira vez com Malou.

A partir desse congresso de 1936 já estavam colocadas os prolegomenos de uma teoria do sujeito que se enchertava na obra de Freud a partir de uma leitura kojeviana de Heguel.

Outros colaboradores: Nietzsche; Kierkegaard; Masson (pintor); Acephale; Bataille; Dalí.

Em 1938, com o empréstimo tomado de Uexküll, Lacan permitia pensar em uma nova organização do fenômeno mental, não mais simples fato psíquico, mas imago, isto é, conjunto de representações inconscientes que aparecem sob a forma mental de um processo mais geral. Vindo do vocabulário Junguiano, o termo imago servia não apenas para inscrever no inconsciente os dois pólos de representação do modelo familiar – pai e mãe/patriarcado e matriarcado, mas também para pensar a organização da família na perspectiva das inovações trazidas por Uexküll fora da pertença a um todo social orgânico. A isso justificava-se o princípio aristotélico de uma essência humana definida, por, pelo menos, três elementos, um homem, uma mulher, um escravo.

Lacan introduz a categoria do je (eu), pronome pessoal da primeira pessoa do singular, para designar o sujeito, em oposição ao moi(eu) utilizado para traduzir i Ich(eu) freudiano, comumente traduzido por ego.

Para Lacan o Complexo do Desmame fixa no psiquismo a relação de amamentação sob o modo parasitário que as necessidades da primeira idade do homem exige; ele representa a forma primordial da imago materna. Portanto funda os sentimentos mais arcaicos e mais estáveis que unem o indivíduo à família. Quando essa imago não era sublimada, para permitir o vínculo social, tornava-se mortífera, tais como anorexia mental, toxicomania. Em seu abandono à morte, o sujeito busca reencontrar a imago da mãe.

O Complexo da Intrusão fixava, pela identificação mental, a relação dual do sujeito com seu semelhante.

O Complexo de Édipo introduzia uma triangulação.

Pichon partilhava com Lacan a idéia de que a família era um agente de tradição e não da hereditariedade.

Na França, em 1953, acontecia uma tempestade idêntica a da Inglaterra, durante as Grandes Controvérsias. O conflito incidia sobre a formação dos analistas e punha em cena um autoritarismo médico e um liberalismo universitário. Lacan, neste momento ainda não ocupava como Klein uma posição importante. Por seu temperamento via-se a todo o momento contradito por sua figura e pelo conteúdo de seu ensino. Para a juventude ele era o porta-voz de uma sólida aspiração revolucionária e semeava a rebeldia entre os alunos.

Assim, Lacan demitiu-se da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP) e juntou-se a Lagache e seus amigos para fundar a Sociedade Francesa de Psicanálise(SFP).

Não percebeu que com isso perdia a qualidade de membro da IPA.

Lacan não se curvava às regras técnicas da IPA. Segundo essas regras, as análises deveriam durar pelo menos 04 anos, com 4 ou 5 sessões semanais e 50 minutos de duração.

Lacan dizia o quanto o adversário queria prejudicá-lo insinuando que ele fazia sessões curtas e análises abreviadas.

Lacan também tinha o hábito de pagar o que devia com cheques, entregues por clientes, mas com o nome ao portador em branco, a fim de que pudessem ser descontados por outros.

Possuía uma clientela de alunos muito maior que os outros, sendo impossível atender a todos no horário integral.

Lacan, consciente da importância de seu ensino e desejoso de ocupar o primeiro lugar na nova sociedade fundada por Lagache, pôs-se a buscar o apoio do Partido Comunista e da Igreja Católica. Buscando apoio de seu irmão Marc-Françóis (da igreja), entregando seu discurso de 150 páginas (Discurso de Roma), sublinhava que na segunda metade do século, tudo dependia da maneira como os homens cuidariam de si mesmos, no domínio leigo. Em realidade Lacan não renunciava ao ateísmo, mas sabia que sua maneira de ler Freud à luz da filosofia e numa ótica não biológica, podia seduzir um bom número de católicos. Procurou, através do irmão uma audiência com o Papa, mas não conseguiu.

Em outubro de 1953, ele se achava numa situação bastante estranha. Na vida profissional encobria sua prática das sessões de duração variável e fingia respeitar a norma; na vida privada, dissimulava aos filhos do primeiro casamento a existência do segundo casamento e da nova família e, em suas orientações ideológicas, fazia crer ao irmão que se tornara de novo cristão, ao mesmo tempo em que tentava estabelecer um vínculo com o Partido Comunista. E foi, no centro disso tudo que ele começou a elaborar um sistema de pensamentos que estava em contradição radical com sua maneira de viver.

Lacan deu importância ao Curso de Lingüística Geral de Ferdinande Sausurre , que ajudou na elaboração de suas teorias.

A questão do Complexo de Édipo de Freud, sofreu muitas contestações. Branislaw Malinowski (antropólogo), saiu a campo, nas Ilhas Trobriand, no Pacífico Sul, para investigar o Complexo de Édipo e constatou que com o matriarcado não ocorria da mesma forma. Em 1928 Geza Roheim decidiu por a prova às teses de Malinowski, num projeto financiado por Marie Bonaparte. Descobriu que um homem que ama a irmã e mantém com o tio uma relação de rivalidade assemelha-se muito ao homem edipiano.

Outra influência de Lacan foi Lévi-Strauss, que em 1949 lançou na época, sobre a questão da proibição do incesto uma nova luz, contornou essa bipolarização para mostrar que a proibição efetuava a passagem da “natureza à cultura” que conduzia a uma reavaliação do estudo das sociedades”.

Para passar a universalização da proibição do incesto, era preciso, ao mesmo tempo, juntar a ela um sistema de parentesco coerente e estender a visão posta sobre ela pela ciência. Daí a reatualização por Levi-Strauss, do termo antropologia como modelo de uma compreensão sintética das instituições humanas.

Jacques Lacan conheceu Lèvi-Strauss em 1949, no grupo de filosofia de Alexandre Koyré, num jantar. Rapidamente os dois estabeleceram laços de amizade pela ligação com as obras de arte de ambos e também pela filosofia.

Lèvi-Strauss escreveu “Estruturas Elementares do Parentesco”. As hipóteses do etnólogo não só faziam voar em pedaços a noção de família em favor da de parentesco, como permitiam repensar o universalismo edipiano proposto por Freud, fundamentando-o não mais no sentimento de um temos “natural” do incesto, mas na existência de uma função Simbólica compreendida como a lei da organização inconsciente das sociedades humanas.

Assim, Lacan encontrava a solução teórica para uma reelaboração de conjunto da doutrina freudiana. O Inconsciente escapava da impregnação biológica (herança darwinista) para ser designado como uma estrutura de linguagem. O Complexo de édipo separava-se de um universal natural para entrar no quadro de um universal Simbólico.

Tão logo se forma um sistema simbólico ele é, desde já, de direito universal. Lacan designava o primeiro elemento à função simbólica, sublinhando que na família moderna ela se identificava a uma função paterna, função exercida por um pai humilhado, patogênico e discordante, dividido entre uma nomeação (o nome do pai) e uma realidade biológica.

O segundo elemento Relação Narcísica, dividia-se em dois pólos: o eu e o Sujeito. O que é o eu senão algo que o sujeito experimenta primeiro como estranho no interior dele? O Sujeito tem sempre, assim, uma relação antecipada à sua própria realização (desejo dos pais).

Os três elementos do sistema: função paterna, eu e o sujeito. O quarto elemento é a experiência da morte, (tirada da pulsão de morte de Freud – concepção hegeliana- Kojeviana da luta até a morte e uma visão hideggeriana do ser para a morte).

Aplicando a grade de Levi-Strauss, Lacan mostrava como se transmitia, de uma geração para outra, sob a forma de especificação negativa, a impossibilidade de contrair alianças análogas aquelas precedentemente contraídas. Há uma repetição de uma estrutura significante presentes na vida de pai para filho, a custa de uma neurose, o que Lacan chama de Mito Individual do Neurótico, uma estrutura complexa pela qual cada sujeito se acha ligado a uma constelação original cujos elementos se permutam e se repetem de geração em geração como o memorial de uma história genealógica.

Lacan levava em conta a inversão de perspectiva ao chamar a função simbólica o princípio inconsciente cínico em torno do qual era possível organizar a multiplicidade das situações particulares a cada sujeito. E não é de se surpreender que tenha feito dessa estrutura um mito e desse sujeito um neurótico.

A esse estabelecimento de um sistema estrutural compreendia a instauração de uma tópica composta pelos três termos: Simbólica, Imaginária e Real.

O Simbólico (Levi-Strauss), era o inconsciente freudiano repensado como um lugar de uma mediação comparável à do significante no registro da língua. Sob a categoria do Imaginário estão todos os fenômenos ligados à construção do eu: captação, antecipação e ilusão. A categoria do Real era introduzida com o que Freud chamava de realidade psíquica , o desejo inconsciente e as fantasias conexas. Assume o valor de uma realidade mental tão consistente como a realidade externa, a ponto de até mesmo tomar o lugar dela. Juntava-se ao real a idéia de morbidez, resto, parte maldita, sombra negra ou fantasma que escapa a razão.

Lacan tentou argumentar seu tempo lógico, como o tempo para compreender de cada sujeito – Sujeito Suposto Saber.

A pontuação (interromper, ou sinalizar), tem por objetivo fazer parir o sujeito de uma fala verdadeira reduzindo o tempo para compreender ao momento de concluir.

Françoise Morrette Dolto, se tornou uma grande amiga de Lacan onde conseguiu evocar longamente a relação carnal de Lacan com sua mãe e sublinhando o papel principal do psicanalista, que era compreendê-lo. Lacan foi questionado por Dolto porque ele jamais falava de seus pais, sua origem, porque era tão inquieto com sua própria imagem e tão obcecado pela aparência externa, porque tinha tanta necessidade de disfarçar-se, freqüentar bailes de mascara, exibir roupas extravagantes. Será que era para dissimular uma espécie de vazio; notara que Lacan se parecia com uma criança narcísica e caprichosa a qual havia faltado, na primeira infância algo de essencial. Assim, mantiveram por muitos anos uma amizade (quase uma analista) que consultava, esperava apoio e que o mimasse.

Lacan buscou ligações com varias pessoas, muitas vezes difíceis, com Koyrée, Kojeve, Corbin, Heidegger, Lévi-Strauss, Hippolite, Ricaeur e, mais tarde Althusser e Derrida, mostrou que toda a valorização do freudismo deve passar por uma interrogação filosófica, mas Lacan jamais abandonou o domínio da clinica psiquiátrica e insistiu que seus alunos fizessem estudos médicos.

Em 1960 o movimento fundado por Freud assemelhava-se a uma multinacional composta por corporações que formavam terapeutas honestos e competentes, mas adaptados ao conformismo dominante nas sociedades democráticas.

Por mais que Lacan criticasse o funcionamento da IPA, isso não o impedia de querer fazer parte dela.

A ruptura de Lacan com a IPA se deu em 1963-1964 que foi tão desastrosa para IPA quanto para a evolução do lacanismo. Os da IPA passaram a ver os lacanianos como jacobinos sectários ou teólogos místicos, mais aptos a semear a rebelião nos espíritos do que a cuidar das neuroses cotidianas. Quanto a Lacan ele perdia nesse exílio qualquer possibilidade de tornar legitima no mundo anglo-americano sua retomada freudiana.

De 1953 a 1963 foi o período de um verdadeiro laboratório de pesquisas para todos os que o freqüentavam: filósofos, psicanalistas e escritores.

Num discurso de grande clareza de Lacan (entrevista no jornal do dia 31 de maio de 1957), pela jornalista Madeleine, ele falou que Freud sabe havia metaforizado sua obra ao mostrar que toda a investigação cientifica fazia o narcisismo humano sofrer uma humilhação. Entre essas humilhações sucessivas ele reconhecia três principais: a primeira, de ordem cosmológica, fora infringida pela revolução copernicana, que havia derrubado a ilusão segundo a qual a terra estava no centro do universo. A segunda de ordem biológica, que vinha do darwinismo e destruía a pretensão do homem de afirmar-se diferente do animal. A terceira de ordem psicológica, resultava na existência do inconsciente freudiano, ela contradizia a idéia segundo a qual o eu é o senhor de sua casa.

Nos estudos do inconsciente, na leitura freudiana tratava-se de adaptar o inconsciente as modalidades do pensamento consciente. Lacan contestava essa tradução, dizia que a psicanálise não tem por tarefa desalojar o isso em proveito do eu, ao contrario, deve permitir situar cada elemento em seu respectivo lugar.

O “eu” não é todo ich, o qual se subdivide em um eu imaginário e um Je enunciativo.

Quanto ao estruturalismo lacaniano, ele repousava sobre a idéia de que a verdadeira liberdade humana era resultante da consciência que o sujeito podia ter de não ser livre, devido a determinação inconsciente. Para Lacan essa forma freudiana de uma consciência de si dividida, cuja origem ele situava na dúvida cartesiana, era mais subversiva do que a crença sartriana, por exemplo, numa possível filosofia da liberdade.

Para Lacan o objeto A é o objeto causa de desejo, objeto perdido para sempre, cuja nomeação por Lacan permite a compreensão de uma serie de achados freudianos relativos à sexualidade humana.

Um significante é o que representa o sujeito para um outro significante. A noção do significante de Ferdinando de Saussure dividia o signo lingüístico em duas partes, denominava significante a imagem acústica de um conceito e significado o conceito propriamente dito. Lacan inverte e coloca o significante como função primordial e em baixo o significado.

Toda significação remetia a outra significação, e através disso reduzia a idéia de que o significante deveria ser isolado do significado, como uma letra ou palavra ou símbolo, desprovida de significação, mas determinante para o destino inconsciente do sujeito. Nesse sentido o sujeito não existe como plenitude, ele é representado pelo significante para outro significante (o dos pais).

Lacan distinguia a foraclusão do recalque, ao sublinhar que no primeiro caso, o significante foracluído ou os significantes que o representam, não são integrados ao inconsciente do sujeito, mas retornam ao real por ocasião de uma alucinação ou de um delírio que vem invadir a fala ou a percepção do sujeito.

A elaboração do conceito de foraclusão liga-se igualmente a teorização da noção de nome do pai, já utilizado desde 1953, onde o inconsciente é o discurso do outro. Quanto ao “pequeno a”, lugar de um eu imaginário, ele tornava-se a questão de um resto, preso no real e não simbolizável: objeto como falta e objeto como causa de desejo.

A partir do debate sobre o narcisismo entre Freud e Jung, Lacan diferenciava a sua maneira o eu ideal do ideal do eu. Definia o eu ideal como formação narcísica pertencente ao registro do imaginário e que tinha sua origem no estádio do espelho e o ideal de eu, como uma função simbólica capaz de organizar o conjunto das relações do sujeito com outrem. Assim o estabelecimento da dualidade A/a era consecutiva a instauração do dualismo do ideal do eu e do eu ideal. Nesse sistema, Lacan reintroduzia a clivagem Levi-Straussiana da universalidade do incesto como passagem da natureza a cultura. Essa permitia pensar uma oposição entre a função simbólica do pai, representante da cultura e a encarnação da lei, e a posição imaginaria da mãe, dependente da ordem da natureza e condenada a fusionar-se com o filho como objeto fálico de um pênis faltante.

Daí a idéia lacaniana da fase edipiana entendida como passagem da natureza à cultura. Se a sociedade humana é dominada pelo primado da linguagem (o Outro, o significante) isso quer dizer que o pólo paterno ocupa na estruturação histórica de cada sujeito, um lugar análogo. Função do pai – função do pai simbólico – metáfora paterna – o nome do pai.

A elaboração desse conceito estabelecia também a teoria do significante e a noção da foraclusão.

Assim, a passagem edipiana da natureza à cultura se dá pela encarnação do significante por nomear o filho com seu nome, o pai intervém junto deste como privador da mãe, dando origem a seu ideal do eu.

Num artigo escrito no L’Express, por Françoise Girond menciona o que Lacan diz: “Não há diálogo, o diálogo é uma tolice” e a comentava assim: “A tolice que a noção de diálogo encobre é que jamais existe troca entre dois indivíduos. Há eventualmente troca de informações objetivas, comunicação de informações, que resultam então numa decisão comum… Mas em qualquer outra situação o diálogo não é senão a justaposição de monólogos. Do mesmo modo que não há relação sexual, para mostrar que a relação sexual não é uma relação ou que, a mulher não existe, para designar a ausência de uma natureza feminina”. E, diz também, da mulher, que “a mulher é não-toda”.

“Se a topologia funcionava como uma busca do Graal da qual surgiam os significantes da infância e os fantasmas da loucura, ela também teve por conseqüência uma reelaboração da doutrina da sexualidade. Quatro proposições eram estabelecidas. Na primeira, todos os homens têm o falo, na segunda, nenhuma mulher tem o falo, a terceira, os homens constituem um conjunto universal de todos os homens submetidos à castração. Só um homem subtrai-se a ela: o pai da Horda, isto é, o pai simbólico. Fabricando um alógrafo, Lacan chamava agaomminzin (ao mais um) “ao menos um”, esse pai encarregado de instituir a fantasia de um gozo absoluto a partir do qual se podia ordenar para todos os outros (homens) o lugar de uma proibição: proibição do incesto, gozo inacessível”.

A quarta proposição: não existe nenhum x que constitua exceção à função fálica. Lacan sublinhava assim o principio, no inconsciente de uma dissimetria radical entre a identidade sexual masculina e a feminina. Para as mulheres, dizia, não existe limite ao gozo. Em conseqüência, a mulher no sentido do universal ou da natureza feminina não existe. Donde a formula: “a mulher não existe” ou ainda “a mulher é não toda”. Quanto ao gozo feminino, ele se define por ser um gozo suplementar. A ausência de complementaridade entre os dois modos da identidade sexual era traduzida por Lacan da seguinte forma: “não há relação sexual”.

Tratava-se de revalorizar a função paterna rebaixada pela sociedade industrial e de mostrar a que ponto a potência feminina era esmagadora em relação à fragilidade fálica. Lacan tomava em sentido oposto as teses feministas clássicas que faziam da mulher uma vitima da opressão masculina. Em vez de negar essa opressão Lacan sublinhava que ela podia do ponto de vista do inconsciente, transformar-se em seu contrario, já que a relação entre os sexos era comandada pelo principio de uma radical dissimetria. É verdade que ele conservava, com Freud e contra Jones, a idéia de um falicismo original e de uma libido única, mas corrigia-a pela tese do suplemento, que lhe fora inspirada por Bataille, pelos surrealistas e por seu convívio com a loucura feminina.

Desse modo, ele continuava a experimentar no final da vida, o mesmo ódio em relação às mães e a mesma fascinação pelas mulheres loucas e místicas. Tudo se passava como se seu próprio romance familiar continuasse a invadir sua doutrina, ainda que ele tentasse dotá-la de um fundamento e de uma formalização capazes de separá-la de qualquer ancoragem afetiva.

Nesse romance familiar, a dominação das mães era sempre apresentada como servindo para abolir ou rebaixar a função do pai. Quanto ao sexo da mulher, Lacan o teorizava como um lugar de horror, um buraco hiante, uma coisa dotada de uma oralidade extrema, de uma essência incognoscível: um real uma eterologia, o terror que lhe inspiravam as mães e o fascínio que sentia pela metáfora animalista de uma mística da oralidade (uma imensa vagina dentada).

Lacan acusava de haver transformado sua infância em pesadelo: Émilie, o avô autoritário dominado pela mulher e Alfred o pai fraco esmagado pelo pai e igualmente submetido a uma esposa devotado à igreja, são os heróis negativos de seu romance familiar.

Lacan dava ao nome de Passe a um ritual de passagem que permitia a um simples membro da escola que tivesse feito uma análise chegar ao posto de AE, até então reservado aos que haviam sido titularizados oficialmente em 1964. O procedimento era o seguinte: o candidato ao passe, que era chamado de passante, devia testemunhar o que havia sido a sua análise, junto a dois outros analistas, chamados passadores-que tinham a incumbência de transmitir o conteúdo desse depoimento ao júri de aprovação.

Lacan denominava queda do Sujeito Suposto Saber a liquidação da transferência pela qual o analista se via na posição de “resto” após ter sido investido de um saber suposto, de uma onipotência.

Dizia que o analista só se autoriza a si mesmo. Com isso ele não destacava que qualquer um pudesse tornar-se analista, mas que a passagem só podia derivar de uma prova subjetiva ligada a transferência.

História de Marguerite – caso Aimée

A historia de Marguerite que será o caso Aimée, iniciou em 18 de abril de 1931, as 08:30 da noite.

Lacan se interessou pelo caso e acompanhou durante um ano onde imitou o estilo de Clérambault. Ele apropriou-se do destino dessa mulher para construir um caso de “loucura feminina” e também suas obsessões familiares e fantásticas. Não lhe restitui nada.

No dia de 18 de abril Marguerite tentou matar a atriz Huguette Dufros. Foi encaminhada a delegacia e enviada a prisão das mulheres onde mergulhou num delírio por vinte dias. Quando o delírio cessou, chorou e tomou uma atitude contraria, disse então que Huguette Dufros não lhe queria mal e ninguém a perseguia.

Entre Lacan e Marguerite houve uma distorção constante, uma frieza, uma hostilidade que nada pode amenizar, pois se Lacan só se interessava por essa mulher para ilustrar sua doutrina da paranóia e redigir uma obra teórica que haveria de fazer dele o fundador de uma nova discursividade freudiana, onde Marguerite sempre recusou o papel que ele queria fazê-la desempenhar.

Marguerite era filha de Jean B. Pautain e Jeanne Anna Donnadieu, que tiveram oito filhos sendo que dois morreram. A primeira filha tinha o nome de Marguerite, que foi morta na infância com fogo no vestido. Depois nasceu Elise e Maria e logo depois uma criança natimorta. Onze meses depois nasceu à segunda Marguerite, que é o caso de Lacan, e após nasceram mais três filhos homens.

A infância de Marguerite foi num ambiente campestre onde a mãe era tida como um “pouco louca”, na comunidade onde demonstrava vulnerabilidade, suas inquietações tenderiam a se transformar em suspeitas. Tinha com freqüência a sensação de ser vigiada ou perseguida.

A filha Marguerite, sendo a preferida obtinha vários privilegios e suscitava o ciúme das irmãs. Diante do pai e dos irmãos, adotava uma atitude viril e refrataria para melhor contestar uma autoridade considerada tirânica.

Marguerite como boa aluna foi enviada pelos pais a cursar o ginásio longe da aldeia, onde sofreu uma decepção e acusou professores de abandonarem os alunos, ela aspirava à grandeza de uma moral religiosa.

Aos 18 anos foi morar com a irmã, interrompeu os estudos de ser professora para trabalhar nos correios. Era de porte rigoroso, voluntariosa, inteligente, sensível e bela. Na cidade logo foi seduzida por um Dom Juan local, e continuou a amá-lo tendo-o como o único objeto de seus pensamentos. A paixão durou três anos, ate o amor converter em ódio. Transferida para outra cidade, teve uma nova paixão desta vez feminina, por uma funcionaria dos correios (a intrigante refinada). A influencia dessa mulher durou quatro anos e após por motivos de transferência ela desapareceu de sua existência.

Casou-se com René Anzieu, filho de um padeiro. O desentendimento não tardou a acontecer. A frigidez sexual de Marguerite chocava-se contra a agressividade do marido e a degradação logo se instalou no coração desse casal.

A irmã Elise ficou viúva e como não tinha filhos foi morar com Marguerite e passou a se ocupar das atividades domesticas junto ao cunhado, com isso M. afastou-se ainda mais do marido.

Em 1921 ficou grávida e fez surgir em seu comportamento a mania de perseguição acompanhada de melancolia. A filha nasce morta asfixiada pelo cordão.

A confusão acentuou-se, as perseguições diurnas acrescentou-se a agitações noturnas, de vez em quando sonhava com a Ataídes, às vezes levantava com intenção de jogar um ferro no marido. Um dia furou a golpes de faca os pneus da bicicleta de um colega. Imputou a morte da primeira filha aos inimigos, principalmente a “intrigante refinada”, como responsável por sua infelicidade. Se fechou em si mesma, mergulhou num mutismo e rompeu com seus hábitos religiosos.

Com a segunda gravidez nasceu seu filho Didier com uma gravidez também depressiva. Após o nascimento não deixava que ninguém se aproximasse do filho o qual amamentou até os 14 meses. Com esses cuidados com o filho a mania-de-perseguição, ficou dividida, de um lado a vida profissional nos correios e do outro uma existência imaginaria, tecida de sonhos e delírios, com artistas e escritores.

Tentou escrever dois livros os quais não foram aceitos. Os livros eram dedicados ao príncipe de Gales. O primeiro livro chamava-se o Detrator e o segundo romance Com o Devido Respeito.

Em seu romance a vida do campo era idealizada em detrimento da existência urbana, fonte de corrupção e decadência. O herói de nome David era apaixonado por uma certa Aimée, que é assim descrita, ela mesma, como uma verdadeira colona.

O segundo romance também era dedicado ao príncipe de Gales e contava a mesma historia invertida. O príncipe devolveu dizendo que não recebia presentes de quem não conhecia.

O filho vai dizer de Marguerite “não é por acaso que minha mãe, ao levar o nome da irmã morta, passou sua vida a multiplicar os meios de escapar do fogo do inferno… padecer sem destino, um destino trágico”.

O filho descreveu seu nascimento também, depois da filha morta e se descreveu como “sufocado como um miolo de cebola sob inúmeras peles”.

Para Lacan Marguerite era como um duplo dele mesmo, menos rica e mais ligada a terra, originava-se, no entanto da mesma França profunda.

A partir do caso Aimée, Lacan passava da psiquiatria para a psicanálise. Era a Freud e seus discípulos que ele buscava conceitos clínicos e a filosofia que se referia para a base teórica.

Lacan juntava-se a posições adotadas pelos surrealistas e sua apreensão da doutrina vienense. Assim ele era o primeiro pensador da segunda geração psiquiátrico – psicanalista francês.

Na época de Marguerite, Lacan ainda não era formado em psicanálise e não empreendeu em sua doente um trabalho psicoterápico, que Marguerite teria recusado conforme o filho. “M. achava Lacan demasiado sedutor e bufão para confiar nele”.

O caso final de Marguerite Aimée, é que ela foi trabalhar como cozinheira na casa de Alfred Lacan.

Depois de ter sido internada e classificada como “desequilibrada constitucional”, em 1943 teve a liberdade, mas continuava a acreditar em perseguições. Foi contratada como governanta e cozinheira onde permaneceu até 1951.

Tendo recuperado a liberdade, tornara-se outra mulher. Para quem ela trabalhou, eles ignoravam seu passado e jamais perceberam o menor sinal de loucura.

Em 1947, o filho de Marguerite, após ter pensado em se tornar ator, escritor e filósofo, mas a lembrança da mãe levou-o a interessar-se pela psicologia e em 1949 fez uma análise com Lacan, sem saber que a mãe tinha sido o caso Aimée. Foi a esposa que o fez reencontrar sua mãe. Nessa época a mãe trabalhava na casa de Alfred Lacan como cozinheira, onde teve a oportunidade de rever seu antigo psiquiatra ao qual reclamou a devolução de seus manuscritos, o qual nunca devolveu.

Didier, filho de Marguerite, questionando Lacan sobre a história de sua mãe, este lhe confessou que reconstruíra a sua história durante o desenrolar da análise.

Quanto a Marguerite, quando a aventura do caso, do mito e da loucura acabou, ela conheceu o destino anônimo dos pensionistas do hospício. Ela, que fora observado, pilhada, fabricada, travestida e mistificada em função das necessidades do discurso psiquiátrico, viu-se então obrigada a sobreviver e a reencontrar uma identidade. O retorno a vida normal foi ainda mais estranho pelo fato de ao acaso, tê-la colocado de novo em presença daquele que ela tanto detestava, Jacques Lacan havia roubado sua história, para construir sua tese.

Em 1950 com o nascimento da neta Cristina Anzieu, teve um relacionamento intenso e caloroso.

Caso das Irmãs Pappin

Lacan, no inicio de 1933, se interessou pelo famoso crime das irmãs Pappin.

Cristine e Lea Pappin, duas domésticas originarias do campesinato pobre e educadas no orfanato de Bom Pastor, massacraram selvagemente suas patroas, a senhora Lancelin e sua filha Geneviève, inundando a casa de sangue e miolos.

O pai das duas havia sido amante da filha mais velha, o avô morrera epilético, um primo louco e um tio fora encontrado em sua granja enforcado.

Antes do assassinato as duas empregadas haviam se queixado a policia de estarem sendo perseguidas. Três psiquiatras as declararam sã de corpo e espírito e foram incriminadas de assassinato sem premeditação. Uma com prisão perpétua e a outra com pena de morte.

Para Lacan, se Aimée tinha agredido a atriz que encarnava seu ideal de eu, as empregadas Pappin haviam massacrado a senhora Lancelin por um motivo equivalente. O verdadeiro móbil do crime não era o ódio de classe, mas a estrutura paranóica por intermédio do qual o assassino atacava. O ideal do senhor que trazia dentro de si. Paranóia de alta punição era o diagnóstico.

O filme: “Entre elas”, é baseado no crime das irmãs Pappin.