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A criança e o brincar na contemporaneidade

A criança não brinca por brincar, não brinca somente para preencher o tempo, para se divertir. O ato de brincar tem uma função estruturante no psiquismo da criança. Ela brinca para representar e simbolizar a realidade, para desvendar os enigmas que o mundo vai lhe apresentando. Fazendo ficção, a criança cria o mistério, que ela mesma, ao encená-lo, vai desvendando. Quando ela brinca, a realidade que a atemoriza começa a ser representada em cena. Para construir sua imagem corporal, é preciso colocar o corpo em cena, se arrastar pelo chão imitando um morcego horripilante, nadar no tapete da sala no faz de conta que é um tubarão assassino para, ato contínuo, vestir a capa de um super-herói, pular do sofá e salvar o mundo de todos os males. Quando brinca com seus medos, ela pode falar deles, pode experimentar a angústia, porque o faz de conta é uma “mentira” que a defende do que é verdade. Embalando e amamentando suas bonecas, dirigindo um ônibus feito de cadeiras, a criança brinca de vir a ser para poder ser.

O mundo e a cultura das crianças mudaram. Os brinquedos não são mais feitos para brincar, mas configurados e estruturados para consumir. Os pais compram os brinquedos, mas não têm tempo nem interesse de brincar com as crianças. A sedução exercida pelas imagens ocupa um papel principal e central na vida contemporânea, um bom recurso para “distrair” as crianças que, enfeitiçadas pelas telas, se alienam do ambiente.
As crianças, na atualidade, têm um modo diferente de brincar, de imaginar, sofrer, pensar e construir sua realidade. Os sintomas das crianças também mudaram: depressão, agressividade, dependências, insônia, apatia, tédio. Sintomas que se manifestam com muita frequência e intensidade nos dias atuais.

Com as mudanças do mundo, a cultura do consumo, a era virtual, temos o risco de a criança ser privada de brincar inventando, de criar encenando, enquanto a tela e/ou o objeto é que se movimentam, agem, falam, cantam e brincam por ela. A criança não se constitui pela posse do objeto, mas num espaço gerador de desejo e articulador de pensamento; para isto acontecer neste espaço, ela precisa criar, encenar, dialogar e, portanto, re-criar a sua existência. Nos dias de hoje, está havendo uma inversão; o brinquedo se representa por si mesmo e está ocupando o lugar de sujeito na brincadeira e a criança o lugar de objeto passivo: o brinquedo faz tudo por ela. O mesmo vem acontecendo com o mundo virtual, como refere o psicanalista Esteban Levin: Cabe a máquina fazer tudo de maneira estereotipada para gerar o efeito de animação desejado. Nesta realidade artificial, as crianças acreditam serem elas quem dominam e comandam as imagens, quando, na verdade, estas é que a dominam, numa experiência individual e solitária.

Com certeza, não é o caso de tirar as telas da vida das crianças, pois elas, indubitavelmente, fazem parte da vida contemporânea. Mas é importante que a imagem não aprisione a criança numa repetição incessante. Portanto, é necessário que, de alguma maneira, a relação dela com a tela seja permeada pela possibilidade de inventar e recriar a realidade, estimulando novas descobertas.

Margareth Kuhn Martta

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