Há um infantil na psicose? | Resenha de livro escrita por Catherine Ferron

Resenha do livro:
Há um infantil na psicose?

 

Catherine Ferron
Psicanalista
Membro da Association lacanienne internationale

Autor: Jean Bergès e Gabriel Balbo
CMC Editora, ISBN 85-88640-04-X, 164p.,2003


Y a t-il un infantile de la psychose?, seminário clínico de Jean Bergès e Gabriel Balbo desenvolvido de outubro de 1998 a junho de 1999, dá continuidade ao seminário sobre as teorias sexuais infantis, e serviu de base para a redação do livro Psicose, autismo e falha cognitiva na criança, publicado na França em 2001.

É em torno de um verdadeiro tabu que se constroem as questões levantadas neste seminário: pode-se falar de psicose da criança ou de psicose na criança? Se isso é possível, como falar? O que falar? Quando falar? Essas questões, e muitas outras, estão à espera, levantadas pela sutileza do título com o qual, na primeira lição, os autores abrem seu ensino. Há um infantil da psicose?(Y a t-il un infantile de la psychose?).

Mesmo que não façamos a análise lógica dessa construção francesa interrogativa, a própria estrutura da frase deve ser interrogada e merece que nela nos detenhamos um instante, pois, com efeito, esse ipsilon, que se tornou latino através de uma longa história de vogais e de consoantes, é ao mesmo tempo um pronome e um advérbio.

Esse y, na expressão Y a t-il, seja na função de advérbio (“aqui”, “neste caso” e “neste momento”) ou de pronome, não tem sentido analisável. Entretanto, é possível destacar a impersonação redobrada (o y se referindo ao “ele” impessoal de que nos fala Benveniste), ao mesmo tempo em que a impersonação da fórmula, associada ao verbo ter e ao verbo haver em seu estado mais simples: há.

Hieróglifo? Significante? Objeto? Não esquecendo o campo da matemática, no qual o y é nossa segunda incógnita após o x, parece-me que é a partir do grande Outro, como tesouro dos significantes, que iremos interrogar o infantil do conceito de psicose, suspendendo assim a função de atribuição e de reconhecimento do juízo para melhor entrarmos no índice bibliográfico racional de sua primeira lição. Conforme os autores nos dizem, o conceito de psicose na criança “é ideológico”.

A segunda lição nos recoloca a questão do transitivismo e sua dupla negação, necessária para o lugar do terceiro, e interroga mais particularmente o social em sua atualidade e a questão do genitor, tendo em vista que a contracepção desaloja o desejo do pai, quem sabe até mesmo o desejo de sua não-demanda. Se uma definição de psicose pode ser “tomar as palavras pelas coisas”, que trilhamentos foram queimados? Desta forma, nossos dois clínicos interrogam o futuro anterior e o real do corpo no terceiro em questão no jogo de posições da mãe e da criança. Quem será esse terceiro? Será a avó materna? A não-demanda do genitor? Que desejo estará empenhado na criança autista? De que desconhecimento essa criança será a avalista? Para examinar tais questões nossos autores não se privam de nos oferecer recortes clínicos, seja o de Victor, o menino selvagem de Aveyron, seja os das crianças que têm em análise.

A terceira lição nos precisa o que está em jogo no autismo e na psicose, ou seja, a dupla forclusão ou o auto-engendramento, o qual organiza a defesa. Como é que no momento do estágio do espelho o corpo da criança permite pensar a respeito de uma oscilação entre depressão e psicose, talvez a raiz da melancolia? Como pensar em uma ligação com a psicose no adulto? Como pensar o pai simbólico?

Apoiando-se em Freud, tanto um quanto outro examinam, na quarta lição, o lugar da menina, para quem o primeiro objeto é a mãe. Eles dão a palavra a Jane Wiltord e, através dela, à mãe de uma língua crioula, que acentua o lugar da avó materna quando esta interdita à sua filha trazer-lhe uma criança, ao mesmo tempo em que a faz pensar nessa hipótese. Desta forma, coloca sua filha em uma linhagem, em um certo tipo de Anunciação na qual o corpo está forcluído, e assim fica preservado o necessário transitivismo. Nessa mesma lição, os autores investigam a função da cor no imaginário do corpo.

A quinta lição é sem dúvida a mais difícil, mas eles avançam de forma magistral e corajosa, partindo da mais simples definição lacaniana: entre dois significantes há apenas uma diferença. Com isso, colocam três questões preliminares: o que é o Nome-do-Pai? Como isso se dá para a menina e para o menino? E enfim: o que é ser pai?

Os seminários de Lacan: O ato psicanalítico e Mais, ainda, ajudam-nos a acompanhar os questionamentos de Bergès e Balbo. A ficção de Édipo é necessária: a falta na menina e o engodo no menino. A partir dessas duas funções situadas pelo desejo da mãe, o sujeito vai se ordenar ao significante “ser pai”. Quem pode dizer o que é isso? Aí está a suposição, o furo, o pai morto de Totem e tabu. Mas a etimologia do significante “matar” interroga tanto a morte quanto o apaziguamento e a conservação. Isso seria a encenação dos juízos de existência e de atribuição, que se poderia assim resumir: se a mãe atribui uma hipótese a seu objeto, então haverá uma criança sujeito. Existem o um, o outro e uma pura diferença. E é aí, quando no Outro da mãe há a hipótese de um significante representativo no Outro da criança, que o transitivismo normal mãe/filho pode ou não falhar mas, acima de tudo, é aí também que, nessa ocasião, um novo sujeito pode vir a nascer.

Dois inconscientes, dois Outros. Interrogando incessantemente a estrutura, nossos dois autores fazem um ir e vir entre a disparidade subjetiva da sessão analítica e a relação mãe/filho. Que articulação existe entre o Outro sem sujeito, do qual fala Lacan, e o Outro do inconsciente?

No autismo não se encontra o real da demanda, enquanto na psicose constata-se a ausência de Bejahung. Os autores propõem então uma chave para trabalhar com a psicose e pensar a substituição da hipótese de uma não-demanda por uma demanda, naqueles casos em que aquilo que fora desalojado no tesouro dos significantes tenha sido localizado. O infantil na psicose é precisamente a questão da metáfora do Nome-do-Pai.

A lição de abril coloca a ênfase na clínica e na diversidade dos diagnósticos de psicose. Em particular, salienta a posição depressiva ao retomar o exemplo de Narciso e de seu “real em espelho”. Aí não se deu o movimento transitivista. Certas mães não conseguem barrar um grande Outro ameaçador e sulcam uma imagem que não pode se tornar simbólica. Do que se defende a criança psicótica nesse “querem minha perda”?

A forma como a criança instala um sistema de defesa que lhe permita dissociar o grande Outro e sua mãe é o exemplo clínico do Petit Robert, no capítulo 7, que organiza um delírio e, através dele, um saber sobre suas origens. O perseguidor seria o “terceiro obrigatório”. Surge então, imediatamente, a questão clínica que os autores nunca deixam de lado: como tratar a paranóia? A organização da perseguição se dá “no caso de” ou “para se garantir de”?

E, como sempre, Narciso: o estágio do espelho está aí para fazer corte entre a imagem de “mas sou eu (moi)!”, e o eu (je) que aí se constitui.

A respeito do discurso real e da coisa, Lacan nos indica em inglês o thing, tão próximo de signe, e disso que um “significante pode ser levado a produzir: signo”. Aí está o sistema defensivo, retomando a articulação bem precisa do momento no qual a criança se volta em direção a sua mãe, deixando ao mesmo tempo cair a imagem dela e a sua própria para se apoiar somente no discurso. O que é uma imagem simbólica e qual é seu estatuto no autismo? A impossibilidade de a mãe suportar a “simples idéia” de em seus fantasmas levar essa criança à morte pode ser a tradução disso que os autores chamam de alucinação negativa na criança em tratamento?

Assim como há neurose infantil, haveria também psicose infantil? Se admitirmos que assim como há neurose infantil haveria também psicose infantil, é preciso admitir também que existe para a criança psicótica a necessidade imperiosa de instrução e de educação para ordenar as funções.

Oitava lição: não há corte entre o sujeito e o corpo. Lacan diz mesmo que “o grande Outro é o corpo”. Então, qual é o papel do desconhecimento? Esse corpo, monumento do desconhecimento, que a mãe, através de seu transitivismo, permite à criança recalcar, é justamente o que na psicose ela não pode fazer, visto que é sabedora. O corpo desse filho, atingido por nenhum desconhecimento, torna-se um puro significante. A criança torna-se psicótica por identificação ao discurso de sua mãe que faz uma forclusão relativa a seu próprio corpo. A esse respeito, tanto Freud como Lacan acrescentam que essa mãe é incapaz de uma castração no sentido do recalcamento. Ilustrando a questão, os autores discutem a performance de certos campeões, apontando que o corpo, como aposta, pode ser o lugar de um golpe de força.

Como concluir este prefácio senão deixando a palavra a nossos dois autores no seu livro Psicose, autismo e falha cognitiva na criança: “não é pela imagem ou pelo esquema corporal que o corpo se sustenta, mas pelos significantes que lhe são enganchados e, no caso das falhas cognitivas, versus performance, a questão se coloca de tal forma que os significantes enganchados ao corpo se encontravam de alguma maneira não liberados pela mãe, que para o corpo só pode fornecer o imaginário e nada de simbólico”.

Parece-me que temos aí a orientação teórica e prática do trabalho de quem procura dar ao outro uma interrogação desejante.