Retorno a Schreber | Resenha de livro escrita por Ivan Corrêa

Resenha do livro:
Retorno a Schreber

Ivan Corrêa
Recife, 31 d eoutubro de 2006

Autor: Charles Melman
CMC Editora, ISBN: 85-88640-09-0, 340p., 2006


O Retorno a Schreber, de Charles Melman, conjuga um estilo coloquial com um grande rigor conceitual. No embalo das vagas levantadas por S. Freud e J. Lacan, o autor surfa com desembaraço pela “irracionalidade-racional” ou “racionalidade-irracional” do Dr. Jur. Daniel Paul Schreber nas Memórias de um Doente dos Nervos, situando a psicose paranóica nos devidos parâmetros clínicos. O projeto do Dr. Schreber de “fazer avançar o conhecimento da verdade… (que) uma vez reconhecida universalmente não deixará de produzir frutos para o resto da humanidade” tem seu prosseguimento neste agradável e estimulante Seminário.

O irracional do “sistema nervoso” que se torna “almas examinadas” dentro da “racionalidade” schreberiana, segue o fluxo histórico da marcha do conhecimento humano quando o surgimento do phatos como o álogon raiz de dois deu origem aos números “irracionais”, ou o “imaginário” raiz de menos um fez nascer os números “complexos”.

Não é sem razão que Ch. Melman abre seu Seminário com os fragmentos de Heráclito com suas radicais e “luminosas” formulações que raiam as bordas do irracional como “o arco que tem o nome de vida, mas cuja obra é a morte”.

Invocando o teorema do “ponto fixo” de Brouwer, torna-se um corolário a afirmação de que o pensamento de Heráclito promove “a dissolução de todo ponto fixo” e que a hybris, a desmesura ou a arrogância é a pior das coisas, pior que o incêndio. As conseqüências desta noção para a clínica psicanalítica e para a Psicanálise em extensão emergem espontaneamente.

Além disto, esta arrogância conduz à questão da crença que é um problema resolvido pelo psicótico, pois este não tem dúvida, mas certeza. Como disse Lacan, o neurótico “crê nisso”, enquanto que o psicótico “crê isso”. Como então a prática analítica renova a interrogação sobre o dilema entre dogmatismo e ceticismo, entre verdade afetiva e verdade científica?

“Será a escrita uma maneira de gozar de seu corpo?”, questiona Melman, aproximando o gozo da escrita com o gozo do alcoolismo e da toxicomania. Como a partir das Memórias podemos refletir sobre o declínio da função paterna e as inovações legislativas sobre os poderes e atribuições nas relações familiares que estão surgindo atualmente nos códigos civis?

A proposição fundamental – como uma Grundsprache – que sobressai das Memórias e que é ressaltada neste Seminário, é que há pensamento na loucura e que esta é uma organização puramente psíquica da personalidade.