Scriptura 13

Scriptura 13

Psicanálise em tempos desvairados


CONFERENCISTAS

A psicanálise e o mundo contemporâneo: de um mal-estar ao outro
Jean-Pierre Lebrun

Qual a psiquiatria para o amanhã?
Jean-Pierre Lebrun

O psicopatológico na infância hoje 
Sandrine Calmettes

O que nós entendemos por sintoma em nossos dias?
Roland Chemama

Gozamos em sermos instrumentalizados? 
Roland Chemama

A adoção e as protofantasias 
Nazir Hamad

Acerca da histeria 
Jacques Lacan

Gabriel Balbo 
Mario Fleig

 

Apresentação

      Psicanálise em tempos desvairados compõe a Scriptura 13, na qual seguimos as indicações de nossos antecessores, Freud e Lacan, que, com genialidade e estilo próprio, souberam ler as especificidades de seu tempo e nos deixaram seus escritos e conferências como heranças. Nesta edição, falamos sobre o nosso tempo, sobre os nossos dias. Vivemos tempos desvairados. Do espanhol “desvarío”, desatino, loucura, excesso.

      Iniciamos com Jean Pierre Lebrun em A psicanálise e o mundo contemporâneo: de um mal-estar ao outro, que traz conceitos importantes para pensar as questões do social que incidem sobre o aparelho psíquico. De acordo com o autor, estamos vivendo um momento de profundas mudanças na organização social, da passagem de um mundo onde o lugar simbólico de Deus, do pai, do professor, da chefia – ou, dito de outra forma, o lugar de exceção, do ao menos um – que era herdado, transmitido pela tradição, para um mundo horizontalizado onde não há diferença de lugares estabelecida. De uma organização social calcada no patriarcado, para uma nova redistribuição das cartas no jogo. Nessa passagem, o lugar daquele que faz a interdição do corpo da criança para a mãe não está legitimado na cultura, pela tradição. É um lugar problematizado. Lebrun traz uma expressão de Lacan “degenerescência catastrófica”, há um malestar na subjetivação, uma crise no processo de humanização. E questiona: como vamos transmitir a condição humana a partir dessas novas condições? O autor lembra que a operação que precisa ocorrer no processo de constituição subjetiva é a saída do corpo da mãe. Em todas as culturas humanas, a criança precisa sair do corpo da mãe para se tornar sujeito. E é a linguagem que opera essa separação.

     Na segunda conferência, Lebrun indaga: Qual a psiquiatria para o amanhã? Destacando que as formas de sofrimento humano também se transformaram a partir das mudanças estruturais na sociedade, o autor nos lembra de que existe uma diferença entre o processo de socialização e a humanização. Enquanto o primeiro tem o objetivo de integrar as regras da sociedade, o segundo diz justamente desse movimento de pertencer e de poder se opor a essas regras, a partir da própria singularidade. Humanizar é transmitir a necessidade do furo, da perda, da descontinuidade, da ausência... O que se passa quando se deixa uma criança crer que é autônoma desde sempre? Quais as implicações da autoridade parental compartilhada? Quais os efeitos provocados pela rapidez das informações e pelas novas tecnologias na vivência da temporalidade e na constituição psíquica do sujeito? Qual o lugar da psiquiatria nisso? Temporalidade, anterioridade, diferença, alteridade, autoridade, presença e ausência. A clínica do traumatismo. As crianças que, de alguma forma, escaparam da inscrição psíquica da humanização serão objetos da psiquiatria infantil.

      Sandrine Calmettes, ao falar sobre O psicopatológico na infância hoje, retorna à origem do conceito de psicopatologia e nos convida a refletir, a partir da clínica com a criança, sobre o que se constitui como normal e patológico, na singularidade de cada caso. Atenta aos desvarios das novas classificações, questiona a elevação do signo, da descrição fenomenológica, ao estatuto de diagnóstico. A autora alega que a criança não pode evoluir sem encontrar conflitos, crescer sem mudar. A vida das crianças não é uma vida sem encontros problemáticos. Dessa forma: Qual é o valor do sintoma na criança? Será revelador das dificuldades do casal parental? Será revelador das dificuldades de um dos pais? Ou será uma questão própria da criança? Qual a posição da família no tratamento? Ao resgatar os ensinamentos de Jean Bergès, nos lembra de que a clínica não é feita para ordenar, mas para desordenar e perturbar. A clínica incomoda nossas teorias, nossas certezas. O analista tem uma responsabilidade ao ouvir. É preciso trabalhar de forma que as crianças possam avançar na vida, confiando na capacidade que elas têm de inventar, ao viver em meios familiares complicados. A questão é: o que, atualmente, ainda se constitui como autoridade para a criança e para o adulto? Como pode se constituir o significante da falta no Outro ou um ponto de impossível para cada criança?

      Roland Chemama desenvolve alguns pontos fundamentais para pensar a clínica na contemporaneidade. O que nós entendemos por sintoma em nossos dias? é o título de sua primeira conferência, na qual aborda o estatuto do sintoma. Atualmente, não haveria outra concepção de sintoma, diferente das épocas passadas? Seria necessário medicalizar quando o sintoma se trata de uma passagem? Chemama lembra que o sintoma não diz respeito a uma realidade natural, mas que aparece sempre sobre um fundo cultural e social, e às vezes ligado a um momento da vida. Por isso, as questões que o psicanalista vai colocar para si mesmo correm o risco de serem orientadas pelo discurso social dominante no seu meio cultural, quer ele saiba ou não. Chemama remete a Lacan, que desde o início de sua obra considera o sintoma como um significante. Um significante de um significado recalcado na consciência do sujeito, diz o autor. Mais tarde, em seu ensino, Lacan apresenta o sintoma como partindo do real, uma zona que parte do real e que vai se imiscuir no simbólico. O sintoma não tem sentido. Diz respeito ao impossível, da pedra na qual tropeçamos, batemos. Pensar o sintoma como resultante do enodamento dos três registros – real, simbólico e imaginário – tem consequências e coloca questões diferentes para a direção do tratamento e para a noção de cura, algumas aqui desenvolvidas por Chemama neste texto.

      Na segunda conferência, Gozamos em sermos instrumentalizados?, Chemama introduz a noção de instrumento por oposição à noção de objeto. Mas, o que é efetivamente um instrumento? O instrumento é somente um meio, diz o autor. Não tem o valor que a nossos olhos o sujeito toma ou que poderia tomar o objeto que o interessa. Está entre os dois. Se podemos pensar o funcionamento instrumental em relação com uma dimensão ética, será que isso não seria porque a ética, ela mesma, estaria cada vez mais concebida hoje como se se tratasse de regrar um funcionamento instrumental? Podemos dizer que essa instrumentalização tem valor de sintoma? Neste contexto, de teorias utilitaristas da ação, calculando os riscos e os benefícios, às vezes pode ser tranquilizador para o sujeito se conformar com o que, vindo do exterior, é apresentado como o melhor, quando aceita que um tipo de grande gestão saiba o que convém. Seria a instrumentalização uma forma de evitar viver o desamparo? Pensando nos contextos sociais muito desfavorecidos, seria preferível, para o sujeito, ser instrumentalizado do que ser abandonado? Chemama dá um passo adiante e questiona: Seria possível encontrar alguma satisfação em sermos instrumentalizados? E de qual satisfação se trata? Das incidências sociais à particularidade das estruturas clínicas, eis a abrangência desta conferência.

      Em A adoção e as protofantasias, Nazir Hamad questiona, instiga e nos tira do lugar comum ao destacar os efeitos subjetivos da revolução que estamos vivendo, em particular, com as novas formas de reprodução humana assistida e as novas formas de união entre os casais. Quais os efeitos psíquicos quando se exclui o sexual da origem do sujeito? Quais são os efeitos sociais e subjetivos quando o casamento se torna um contrato entre dois, não passando por uma instância terceira (estado, igreja, totem)? Quais as implicações dessa intimidade se um dos dois recua a um consentimento? Como lidar com uma lógica na qual a promessa de gozo se torna uma meta alcançável? O autor traz vinhetas clínicas, cada vez mais frequentes para quem se dedica à escuta dos sujeitos contemporâneos, trabalhando os conceitos psicanalíticos à luz das transformações atuais. Retoma Françoise Dolto, quando dizia que é preciso três desejos para fazer uma criança: o desejo desse homem por fazer dessa mulher mãe de seu filho; o desejo de uma mulher querendo fazer daquele homem pai do seu filho; e aliado a estes há um terceiro desejo, que é o desejo de filho. O terceiro é o Outro, diz Hamad. Então: como situar a dimensão do terceiro nas novas formas de reprodução humana assistida?

      Por fim, trazemos a intervenção de Jacques Lacan em Bruxelas, em 26 de fevereiro de 1977, onde ele indaga: Onde estariam as histéricas de outrora? O que é que substitui esses sintomas histéricos? A histeria não se deslocou no campo social? A Psicanálise não teria sido substituída? Inconsciente, sintoma, afeto, sexualidade, castração, gozo, objeto a, nós e estrutura... Se a Psicanálise não é uma ciência, seria então picaretagem/embuste? Atento às transformações na cultura, que provocam efeitos no sujeito e, portanto, na Psicanálise, Lacan questiona as implicações do nosso fazer sobre o tecer fio a fio, palavra a palavra.

     Vivemos um momento de profundas transformações sociais e subjetivas que interrogam a Psicanálise. Frente a essas transformações, nos perguntamos: qual seria o lugar do psicanalista nesse contexto? Sandrine Calmettes nos dá uma pista quando diz que a nós, como analistas, não nos cabe opinar; a nossa opinião não vai frear essas transformações. Então, talvez possamos situar aqui um ponto de impossível para a nossa prática. No entanto, vamos lidar com os efeitos dessas transformações, às quais todos estamos submetidos. Esses textos, portanto, podem ser lidos como um convite: eis o novo... não recuemos. Em tempo, queremos agradecer à Especialização “Psicanálise: técnica e teoria” e à Extensão “Psicanálise em tempos desvairados”, ambas ocorridas na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, pela parceria em viabilizar a transmissão dessas conferências.

Elenice Cazanatto